O arquiteto morreu em dezembro do ano passado. Mas seus herdeiros continuam usando a grife ilustre para ganhar projetos públicos sem concorrência
A importância da obra de Oscar Niemeyer (1907-2012) para o Brasil e para o mundo é indiscutível. A inovação e o arrojo técnico são características que se destacam em seu trabalho desde os experimentos com concreto armado na Igreja da Pampulha. Nos últimos anos de vida, Niemeyer foi perdendo o vigor e produziu mais polêmicas que obras-primas. O uso constante da prerrogativa de dispensa de licitação para obras públicas era malvisto por colegas, que o acusavam de monopólio. Até os 104 anos de idade, Niemeyer continuou assinando contratos com a União, Estados e municípios, sempre com base na lei que permite a isenção de concorrência para profissionais reconhecidos como ele. Com a morte de Niemeyer, em dezembro passado, a discussão parecia ter chegado ao fim. Mas a grife de Niemeyer continua produzindo novos projetos - e a prerrogativa de fazer negócios com o poder público sem participar de licitação foi, ao que parece, estendida a seus herdeiros.
Desde dezembro do ano passado, mês da morte de Niemeyer, sua neta Ana Elisa Niemeyer, de 62 anos, e o sócio Jair Valera já foram contratados para elaborar pelo menos três projetos com dispensa de concorrência pública, no valor global de R$ 3,5 milhões. Os projetos serão desenvolvidos para os Estados de Rondônia, Rio de Janeiro e Minas Gerais, a partir de desenhos deixados por Niemeyer - ou mesmo sem nenhum traço do mestre. É o caso do contrato para elaborar projetos de caminhos e abrigos de ônibus em Belo Horizonte, assinado entre o governo de Minas Gerais e o escritório Ana Niemeyer Arquitetura e Consultoria, de propriedade dela. Tal qual na velha piada argentina - segundo a qual, na ausência de novos ídolos musicais, Carlos Gardel canta cada vez melhor -, é como se Niemeyer, depois de morto, continuasse desenhando. E cada vez melhor.
Esboço de Projetos de Niemeyer - Brasília
Niemeyer foi dispensado de licitação para projetar Brasília, foi escolhido pessoalmente presidente Juscelino Kubitschek
Niemeyer foi o arquiteto brasileiro que menos entrou em concorrência para elaborar projetos públicos. Para construir Brasília, Niemeyer foi escolhido pelo presidente Juscelino Kubitschek, enquanto Lúcio Costa teve de enfrentar outros 25 concorrentes num certame para desenvolver o plano urbanístico do Distrito Federal. Com a Lei de Licitações, de 1993, seu escritório passou a ser enquadrado no artigo que dispensa a concorrência para profissionais com notório conhecimento. Nos últimos 12 anos de vida, seu escritório recebeu R$ 33 milhões somente do governo federal. Assinou contratos com Estados e municípios de todo o país, com projetos que vão de Campina Grande, na Paraíba, até Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
"Niemeyer tinha um talento excepcional, não era um arquiteto qualquer. O Brasil teve a sorte de contar com ele, e é positivo que a lei dê esse espaço para casos assim" diz o presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil, Sérgio Magalhães. "Mas a dispensa é para um profissional, não para um currículo associado a esse nome." A neta de Niemever, Ana Elisa, pensa diferente. "A lei não foi feita para meu avô. Qualquer um com longa experiência como a nossa tem o mesmo direito" diz. Além dela, trabalhavam direta ou indiretamente com Niemeyer outros três netos, três bisnetos e um sobrinho. A Fundação Oscar Niemeyer tem em arquivo 151 projetos inéditos, em estágios diferentes de elaboração. Alguns são apenas croquis, outros têm até maquete. Também existem projetos nas mãos de colaboradores e familiares. Boa parte tem potencial para se transformar em obras reais - possivelmente, com dispensa de licitação - e há muitos gestores públicos interessados.
Foto: Divulgação
Aquário Público de Maricá – obra póstuma?
Na semana passada, o prefeito de Maricá, Rio de Janeiro, Washington Quaquá, contratou sem concorrência o escritório de Niemeyer para desenvolver um desses projetos de gaveta. É um aquário público, desenhado em 2008 para Salvador, mas que não saiu do papel. Ana Elisa e Valera adaptaram o projeto para Maricá, acrescentando uma escola e um anfiteatro. As plantas estruturais, o projeto legal e de urbanismo custarão ao município R$ 2,4 milhões. Projetos como esse, da fase tardia de Niemeyer, não são 100% dele.
Depois de 2006, quando sofreu uma queda em casa e fraturou o quadril, sua saúde se complicou bastante. Ele passou a usar cadeira de rodas, não tinha mais firmeza nas mãos para desenhar e começou a desenvolver uma degeneração macular senil, que o deixou praticamente cego. Nos últimos anos, não fazia mais os croquis, apenas discutia os projetos e dava sugestões finais apalpando as maquetes ou tentando enxergar as plantas numa mesa iluminada. O desenvolvimento era feito por seus familiares ou colaboradores.
"O escritório poderia ter a presença dele, mas certamente os projetos não tinham mais sua cara", diz Carlos Magalhães da Silveira, que foi genro de Niemeyer e dirigiu o escritório por mais de dez anos. Ele se afastou dos negócios por discordar da maneira como a família conduziu seus últimos projetos. "Oscar não tinha mais controle. O escritório passou a produzir em série, como uma fábrica. Para mim, esses projetos não são mais dele", afirma Magalhães.
O sistema de trabalho não mudou muito com a morte de Niemeyer. Em janeiro deste ano, o escritório foi contratado por R$ 910 mil para elaborar o projeto de construção de um campus da Fundação Oswaldo Cruz, em Rondônia. Niemeyer fizera alguns esboços para o projeto na década de 1990, mas o dinheiro só apareceu agora. Com o contrato assinado, Valera desenvolveu o projeto dos edifícios principais, que já haviam sido esboçados, e desenhará por conta própria os demais. O campus é chamado de primeiro grande projeto de Niemeyer para a Região Norte.
Foto: Divulgação
Cidade Administrativa Presidente Tancredo Neves em Minas Gerais
Para Valera, que trabalhou por 30 anos com Niemeyer, os inúmeros projetos desenvolvidos em conjunto permitiram assimilar suas linhas mestras. Ele acredita que a dispensa de licitação continua legítima. "O notório saber era do escritório", afirma. Com essa prerrogativa, os sócios assinaram, em maio deste ano, um contrato no valor de R$ 265 mil para elaborar os projetos de caminhos e abrigos de ônibus na Cidade Administrativa, uma obra de Niemeyer em Belo Horizonte. Segundo o governo de Minas, não houve licitação porque a neta é a única que detém um termo de cessão deixado por Niemeyer, que permite realizar acréscimos em seus projetos. Na opinião do procurador do Ministério Público Federal Marinus Marsico, não há justificativa para que a dispensa de concorrência seja transferida aos herdeiros. "A prerrogativa deve ir para o túmulo com o arquiteto. Se não for assim, vira uma coisa cartorial", diz.
Ele critica a legislação atual que versa sobre o tema. "Essa notória especialização é um mecanismo infeliz, que dá margem a diversos tipos de manobras. São raríssimos os casos em que deveria ser utilizada", diz. A lei permite dispensa de licitação tanto para empresas como para profissionais com notório conhecimento. No caso de Niemeyer, segundo o especialista em licitação Inaldo Vasconcelos, não há dúvidas de que a prerrogativa estava relacionada à pessoa física, não à jurídica. "A referência era em cima do nome do profissional, e não se pode contratar quem já morreu", diz. Nenhum órgão fiscalizador se debruçou ainda sobre o caso. Em 2010, com Niemeyer vivo, o Tribunal de Contas da União emitiu um acórdão" definindo que seu escritório não poderia mais ser dispensado de licitação para serviços de engenharia, também contemplados nos contratos.
Mesmo assim, Niemeyer continuou elaborando sem concorrência projetos de arquitetura e engenharia, como a nova sede do Ministério do Desenvolvimento Social, assinado dois meses depois do acórdão e não investigado. Não é estranho, portanto, que seus herdeiros considerem a dispensa de licitação como um legado de Niemeyer.
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