Traduzido para o universo político, o conhecido ditado “em casa onde falta pão todo mundo briga e ninguém tem razão” aplica-se perfeitamente às relações atuais entre a presidenta Dilma Rousseff e o Partido dos Trabalhadores. Escalpelados pelos protestos de junho, que jogaram no lixo a perspectiva de uma reeleição fácil em outubro do ano que vem, o governo e o PT alimentam um cotidiano de desconfianças, ameaças, jogo duplo e críticas amargas.
Por trás de gestos de boas maneiras e cortesia formal, o Palácio do Planalto tem sido assombrado, nos últimos dias, por um velho fantasma petista. Prefeita de São Paulo entre 1989 e 1993, a atual deputada Luiza Erundina (PSB-SP) entrou para os anais petistas como símbolo de autoridade desgastada e incompreendida pelo próprio partido, a quem hoje acusa de ter sabotado seus esforços para firmar um perfil duradouro a sua gestão, inclusive com a criação da passagem gratuita para ônibus, que teria tanta importância nos protestos de duas décadas depois. No Planalto, teme-se que isso ocorra também com Dilma.
Foto: Daniel Teixeira/ estadão conteúdo
Há duas semanas, convencida de que os petistas queriam colocar “uma faca em seu pescoço” e forçar mudanças de rumo na política econômica e na estratégia eleitoral de 2014, a começar pela aliança com o PMDB, a presidenta Dilma cancelou, na última hora, sua presença num encontro do Diretório Nacional petista, instância máxima de decisão do partido.
A ausência provocou uma reação imediata, que incluiu um discurso indignado do ex-ministro José Dirceu e uma inesperada cena de choro por parte de Sebastião Rocha Filho, um dos mais antigos e influentes dirigentes do partido.
Cinco dias depois, Dilma repetiu a atitude. Não compareceu a um encontro marcado previamente com a bancada do PT no Senado, instituição que se transformou numa fortaleza de resistência, depois que a Câmara foi capturada pela oposição.
A presidenta alegou, o que era verdade, que estava gripada e com forte dor de garganta. Em vez de remarcar um novo encontro para uma ocasião em que estivesse restabelecida, Dilma despachou as ministras Gleisi Hoffmann, da Casa Civil, e Ideli Salvatti, de Relações Institucionais, em seu lugar.
Levados a debater seus pleitos num diálogo no qual todas as decisões estão sujeitas a referendo posterior da presidenta, mais uma vez os petistas sentiram-se desprestigiados e rebaixados.
Foto: Roberto Castro/ Agência IstoÉ
Na quarta-feira 31, quando centenas de militantes e dirigentes do partido se reuniram em Brasília, o ambiente era tenso. A equipe econômica havia acabado de anunciar um corte de gastos da ordem de R$ 10 bilhões, decisão que ameaçava não só o trabalho cotidiano de vários ministérios, mas também as perspectivas eleitorais de 2014.
Um dos oradores, secretário-geral de um ministério importante, comentou que o corte poderia implicar a dispensa de funcionários terceirizados – os únicos que podem ser demitidos imediatamente – e lamentou: “É um erro cortar rompendo pontes com a sociedade, botar gente na rua perto da eleição.” Em palavras que traduzem o espírito geral dos descontentes, o mesmo funcionário disse: “No meu ministério, não vamos demitir nem mesmo um peão.”
O encontro da quarta-feira 31 tinha como pauta a nova esperança de reconciliação entre os petistas e o governo – o programa Mais Médicos – e por essa razão o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, ocupou o centro das atenções.
Embora tenha sido forçado pelos protestos das entidades médicas a cancelar a ideia de ampliar a formação universitária de seis para oito anos, reduzindo também a residência para um ano, o Planalto não tem dúvidas de que a proposta de levar médicos para os municípios e bairros pobres vai trazer benefícios eleitorais a Dilma.
“Se nós soubermos trabalhar, o programa vai polarizar o debate de 2014. Esse é um embate político que tem a nossa cara”, disse Padilha.
Foto: Renato Araújo/Agêcia Brasil
BOM DE BRIGA - Movimentos do deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) esvaziaram as principais ideias de Dilma Rousseff sobre a reforma política
Como a experiência demonstra, a perspectiva de manutenção do poder de Estado sempre foi um dos principais lubrificantes de toda a atividade política. Mas nem todas as diferenças entre o PT e o governo são fáceis de resolver – algumas são até difíceis de esconder.
O PT e a máquina de entidades que influencia, a começar pela Central Única dos Trabalhadores, está em campanha para obter 1,3 milhão de assinaturas de apoio a um projeto de iniciativa popular para mudar as regras dos meios de comunicação no País – proposta que provoca arrepios horrorizados no Planalto.
Em outro capítulo, na partilha de cargos, os petistas tiveram direito a 17 ministros na Esplanada, o que não é nenhuma ninharia, mas reclamam que nenhum deles tem autonomia para tomar decisões em sua área. O Planalto responde que é assim mesmo: são ministros do governo Dilma e não representantes do partido.
Na política econômica, os petistas aplaudiram a queda de juros, mas têm elevado suas queixas contra concessões recentes aos empresários, como desonerações da folha de pagamentos que trouxeram uma redução de tributos, embora nenhuma contrapartida nos investimentos produtivos.
Queixando-se das frequentes desavenças com o Congresso, a presidenta costuma dizer que o PT precisa de um “síndico” para administrar sua bancada na Câmara de Deputados. O PT retruca apontando o dedo para o PMDB.
Enquanto o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), propõe a votação de “pautas-bomba”, que têm forte impacto nas contas públicas, como a proposta de passe livre para estudantes no transporte público, os deputados do PT argumentam que os problemas com o Congresso nasceram justamente de uma decisão errada do Planalto, que em negociações realizadas logo depois da posse concordou em entregar aos aliados do PMDB, muito mais interesseiros do que se supunha, o comando do Senado e da Câmara ao mesmo tempo – situação que expõe o PT e o governo às facadas de ex-amigos.
Do outro lado da trincheira, o Planalto se queixa de que os parlamentares do PT não deram o devido apoio à proposta de reforma política e ao plebiscito, permitindo a atuação do deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) em movimentos que esvaziaram as principais ideias da presidenta. Neste caso, os petistas, que em sua maioria apoiam o plebiscito e a reforma política, estão de acordo.
Nesta selva de diferenças e conflitos, a ideia de “Volta, Lula,” é uma conversa que não tem valor de uso real, ao menos pelo momento, mas crescerá sempre que petistas descontentes quiserem atingir Dilma.
No momento, no PT e no Planalto cresce a torcida para que novos diálogos entre Dilma e Luiz Inácio Lula da Silva possam levar a um maior entendimento em relação à campanha de 2014. É um esforço delicado por natureza.
A intervenção de Lula não pode ser tão pequena a ponto de não produzir efeito. Nem tão grande a ponto de diminuir a presidenta.
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