No último mês de junho, o mundo tomou conhecimento do maior programa de monitoramento em massa de comunicações de que se tem notícia até hoje, promovido pela Agência Nacional de Segurança, a NSA, do governo dos Estados Unidos. As revelações foram feitas pelo ex-consultor
Edward Snowden, que trabalhou para a NSA e copiou milhares de documentos sigilosos. Vazados inicialmente para o jornal britânico
The Guardian (publicados pelo colunista Greenwald, que também assina esta reportagem), os papéis revelam a escala global da ação da NSA.
No mês passado, o jornal
O Globo revelou que o Brasil era um dos alvos prioritários da ação da agência americana. Em Brasília, o porta-voz escalado pelo governo americano para tratar de um assunto tão delicado foi o embaixador Thomas Shannon Jr., no cargo desde fevereiro de 2010. Ele minimizou o conteúdo das reportagens. Afirmou que elas apresentaram “uma imagem que não é correta” do programa de inteligência da NSA.
Oficialmente convocado, Shannon reuniu-se com os ministros das Relações Exteriores, Antonio Patriota, das Comunicações, Paulo Bernardo, e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), José Elito Carvalho Siqueira. Shannon anunciou a criação de um grupo de especialistas para investigar as denúncias e se comprometeu a colaborar com o Brasil. Para o governo brasileiro, suas explicações foram consideradas “insuficientes”.
Um novo documento ultrassecreto da NSA, obtido por ÉPOCA com exclusividade, revela que o envolvimento de Shannon com a NSA é anterior a sua nomeação para o cargo de embaixador no Brasil. Shannon não apenas conhecia a ação de coleta de dados sobre representações diplomáticas de outros países da região, como se beneficiou dela. Fez isso no início da gestão do presidente Barack Obama quando, ao ocupar o cargo de secretário-assistente de Estado, respondia à secretária de Estado Hillary Clinton.
Foto: Foto: Reprodução/ÉPOCA
Em ofício de 19 de maio de 2009, cerca de sete meses antes de ser confirmado como embaixador do Brasil, Shannon agradece e parabeniza o diretor da NSA, general Keith Alexander, pelas “excepcionais” informações obtidas numa ação de vigilância de outros países do continente, antes e depois da 5ª Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago, em abril daquele ano. Ele assina o documento, “em nome do Departamento de Estado” – portanto, em nome da então secretária Hillary Clinton. Procurado por ÉPOCA, o governo dos Estados Unidos, por intermédio de sua embaixada em Brasília, informou que não comenta nenhum tipo de atividade secreta e que, portanto, não se pronunciaria.
Shannon celebra, no documento, como o trabalho da NSA permitiu que os EUA tivessem conhecimento do que fariam na reunião os representantes de outros países. Afirma que tal trabalho foi essencial para manter o governo americano informado em seu mais alto nível. “Os mais de 100 relatórios que recebemos da NSA nos deram uma compreensão profunda sobre os planos e intenções de outros participantes da Cúpula e garantiram que nossos diplomatas estivessem bem preparados para aconselhar o presidente Obama e a secretária Clinton sobre como lidar com questões controversas, tais como Cuba, e interagir com contrapartes difíceis, como o presidente venezuelano, Hugo Chávez”, escreveu Shannon.
A Cúpula das Américas de 2009 era considerada estratégica pelo governo Barack Obama. Para entender as razões, é necessário conhecer um pouco da história do encontro. A Cúpula das Américas foi criada em 1994 pelo então presidente americano, Bill Clinton, com o objetivo de se aproximar política e economicamente das demais nações do continente. Nas três primeiras reuniões – em 1994, 1998 e 2001 –, o assunto mais discutido foi o projeto de integração comercial, na forma da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). O governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso não era simpático à ideia. Preferia fortalecer sua liderança regional no Mercosul. Fez várias exigências para que a Alca se concretizasse. Depois de anos de negociações, os Estados Unidos atenderam a essas exigências em 2001 e abriram caminho para um diálogo mais aprofundado. O assunto virou tema da campanha presidencial do ano seguinte, quando a Alca foi repudiada pelo Partido dos Trabalhadores. Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito e, por motivos políticos, deixou o assunto em segundo plano. Com o Brasil de fora, a Alca foi enterrada. E a Cúpula, esvaziada de seu principal objetivo, perdeu importância.
Sem objetivo concreto, os Estados Unidos, criadores da Cúpula, chegaram à quinta edição do encontro com um objetivo simbólico. Na reunião realizada em 2009, em Trinidad e Tobago, a intenção era apresentar o novo presidente dos EUA, Barack Obama, como um líder disposto ao diálogo com as demais nações americanas. Era também a primeira vez em que Obama se encontraria com dois desafetos declarados dos Estados Unidos: os presidentes Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia). Em setembro de 2008, ainda no governo de George W. Bush, a Bolívia declarara persona non grata o embaixador dos EUA no país, Philip Goldberg, e o expulsara de La Paz, sob a acusação de conspirar e “fomentar separatistas” nas províncias opositoras ao governo. Seguindo o princípio da reciprocidade, Washington fez o mesmo com o representante boliviano em seu solo, Gustavo Guzmán. O venezuelano Chávez elevou ainda mais a tensão com o governo americano, ao ordenar a saída do país do embaixador americano em Caracas, “em solidariedade” à Bolívia. Em março de 2009, Morales expulsou mais um diplomata americano, Francisco Martínez.
Nesse período, cabia a Shannon a operação da diplomacia dos EUA na região, sempre sob as ordens de Hillary. Foi nesse contexto de adversidade e enfrentamento que ele enxergava Morales e Chávez como “rivais determinados a constranger” e a “desafiar os interesses” dos EUA, como se lê no documento obtido por ÉPOCA. Os dois tinham uma agenda para a cúpula: pregar contra o embargo americano a Cuba e tentar esvaziar o discurso de integração de Obama. Assim que tomou posse, em 2009, Obama demonstrou disposição em reconstruir laços no continente e a melhorar as relações com Cuba. Logo no começo do mandato, tornou mais flexíveis as limitações de viagens de americanos a Cuba, reduziu as restrições a remessas de dinheiro de cubanos residentes nos Estados Unidos e autorizou empresas de comunicações americanas a operar por lá. Acabar com o embargo, no entanto, não estava a seu alcance. Obama teria de contrariar vários interesses, firmemente estabelecidos no Congresso.
Fotos: Jim Watson/AFP, Saul Loeb/AFP e Anderson Schneider/Ed. Globo
Barack Obama cumprimenta Hugo Chávez na Cúpula das Américas de 2009 (na foto de cima). Chávez presenteou Obama com um exemplar do livro As veias abertas da América Latina e ganhou a guerra da propaganda. Abaixo, Hillary Clinton, secretária de Estado americana em 2009, e Thomas Shannon, então secretário-assistente. Ele enviou à NSA uma carta agradecendo, em nome do Departamento de Estado, o trabalho realizado na Cúpula das Américas
As intenções diplomáticas de Obama esbarraram no talento marqueteiro de Chávez, com suas conhecidas ambições regionais. A imagem que marcou a quinta Cúpula das Américas foi a fotografia de Chávez dando a Obama um exemplar do livro As veias abertas da América Latina, clássico da esquerda de autoria do uruguaio Eduardo Galeano. Num tom caro ao vitimismo político dos anos 1970, o livro mapeia a “exploração” dos países latino-americanos pelas “potências hegemônicas”. “Chávez conseguiu mudar a agenda do encontro e obteve uma vitória do ponto de vista da propaganda”, diz o professor José Augusto Guilhon Albuquerque, da Universidade de São Paulo. “A mensagem de Obama era a aproximação das demais nações do continente. O gesto de Chávez mudou o discurso para: ‘Todos contra os Estados Unidos’.”
Apesar disso, a avaliação de Shannon para o resultado da Cúpula foi positiva. “Nossa nova administração estava determinada a construir uma relação produtiva e positiva com nossos vizinhos, enquanto nossos rivais na região estavam igualmente determinados a nos constranger e desacreditar”, afirma o embaixador no documento obtido por ÉPOCA. “Tivemos êxito e nossos rivais fracassaram, e nosso sucesso se deve, em boa medida, às informações abundantes, detalhadas e no tempo certo que vocês forneceram.”
A história teve desdobramentos. No mesmo documento, Shannon diz: “Nosso trabalho está longe de terminar – a Assembleia-Geral da Organização dos Estados Americanos, no próximo mês, provavelmente trará discussões renovadas sobre Cuba, e países como Venezuela e Bolívia permanecem com a intenção de desafiar os nossos interesses no curto prazo –, mas estou confiante de que as informações da NSA continuarão a nos dar a vantagem de que nossa diplomacia necessita”. Em 4 de junho, na Assembleia-Geral da OEA, em Honduras, foi anulado o ato que suspendia Cuba da organização. Foi uma derrota diplomática dos Estados Unidos. Houve tensão e discussões. Os países reunidos por Chávez em seu arremedo de pacto regional, a Aliança Bolivariana das Américas (Alba), defendiam, além da revogação, um pedido de desculpas a Cuba. Ao final, prevaleceu uma solução intermediária: foi anulada a suspensão a Cuba na OEA, mas Cuba ainda não pode integrá-la na prática.
O documento obtido por ÉPOCA não esclarece uma questão fundamental: a que tipo de dado Shannon e sua equipe tiveram acesso? Não informa se puderam ler e-mails de delegações de outros países. O governo americano nega que a NSA tenha acesso ao conteúdo de mensagens e ligações telefônicas. Afirma que o trabalho de inteligência eletrônica se limita à coleta de informações como dia e hora de uma ligação telefônica ou local de acesso a uma conta de e-mail. São informações conhecidas tecnicamente pelo termo “metadados”.
As revelações de Snowden lançam dúvidas cada vez maiores sobre essa versão. Na semana passada, ÉPOCA revelou que, em 2010, a então embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas, Susan Rice, teve acesso a pelo menos 100 relatórios da NSA sobre pelo menos oito integrantes do Conselho de Segurança da ONU antes da aprovação de sanções econômicas contra o Irã por causa de seu programa nuclear. Nas próprias palavras dela, os relatórios ajudaram-na a saber “quando os outros membros permanentes estavam dizendo a verdade”, revelaram “suas reais posições sobre as sanções” e deram a ela “uma posição de vantagem nas negociações”. “Todas as evidências indicam que fizeram escuta mesmo das conversas”, disse a ÉPOCA o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo.
Foto Alexei Nikolsky/AP
Vladimir Putin, presidente da Rússia, e o visto de asilo concedido a Edward Snowden. O incidente criou um estremecimento diplomático entre Rússia e Estados Unidos
Na semana passada, o The Guardian revelou detalhes do programa XKeyscore, que permite a analistas saber quase tudo o que alguém faz na internet. O material de treinamento da agência diz se tratar do “sistema de mais amplo alcance para desenvolver inteligência baseada em dados virtuais”. Altamente sigiloso, o XKeyscore permite aos analistas fazer buscas sem autorização prévia em vastos bancos de dados, com acesso até mesmo ao conteúdo. De acordo com os documentos que Greenwald obteve com Snowden, o XKeyscore tem acesso a 700 servidores em 150 pontos do mundo, inclusive no Brasil. Ao longo dos últimos três anos, os Estados Unidos pagaram 100 milhões de libras (R$ 350 milhões) para ter acesso aos dados do Government Comunications Headquarters (GCHQ), a versão britânica da NSA. Segundo o Guardian, além de ter acesso aos dados, a NSA influenciou e direcionou as investigações do GCHQ.
Todos esses fatos, somados aos que envolvem particularmente o Brasil, vêm preocupando as autoridades em Brasília. A ÉPOCA, o Itamaraty afirmou, em nota, que “o governo brasileiro tem mantido contatos diretos com o governo dos Estados Unidos e está preparando uma missão técnica para que as denúncias de espionagem, seja de órgãos do governo ou de cidadãos brasileiros, sejam esclarecidas”. O ministro de Relações Exteriores, Antonio Patriota, afirmou que o caso “exige grandes cuidados”. “Essas suspeitas são, de fato, suspeitas recorrentes. Recordaria também que, quando houve a iniciativa da intervenção militar americana e britânica no Iraque, em 2003, surgiram várias notícias falando de espionagem na missão do México e do Chile, que eram membros não permanentes do Conselho de Segurança na época, e de outros países também, até alguns membros permanentes.”
Em 2003, de acordo com documentos publicados pelo jornal britânico The Observer, a NSA instalou escutas telefônicas nas casas e nos escritórios de Nova York de delegados da ONU. Isso ocorreu às vésperas de o Conselho de Segurança votar uma resolução que autorizasse os Estados Unidos a invadir o Iraque. A vigilância da NSA visava especialmente às delegações dos seis países do Conselho de Segurança considerados “indecisos”: Angola, Guiné, Camarões, México, Chile e Paquistão. A resolução nem chegou a ser votada, dada a ameaça de veto da França. No final, os Estados Unidos invadiram o Iraque sem aval da ONU.
A revelação de ÉPOCA na semana passada não foi isolada. As consequências dos arquivos de Snowden parecem longe de acabar. Depois de fazer as primeiras revelações sobre a atuação da NSA em junho, ele foi processado pelo governo dos Estados Unidos. Os americanos pediram sua extradição à China, pois ele estava em Hong Kong. Temendo ser preso, Snowden pegou um avião em 23 de junho e foi para Moscou, onde não desembarcou formalmente. Passou mais de cinco semanas na área de trânsito do aeroporto. Na quinta-feira passada, recebeu asilo por um ano do governo de Vladimir Putin. Pôde, finalmente, deixar a área de embarque e entrar em Moscou. O resultado foi uma tensão diplomática entre Estados Unidos e Rússia. O debate aberto pelos arquivos de Snowden – até que ponto organismos de segurança, mesmo com finalidades defensáveis, podem se apropriar de informações privadas de representantes.
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