22 de nov. de 2011

Enéas, amigo para sempre

PERNAMBUCO - LUTO
Enéas, amigo para sempre
Usamos a saudade de Gustavo Krause para homenagear Enéas Álvarez

Foto: Blenda Souto Maior/DP/D.A.Press

Enéas Alvarez, 64 anos, jornalista, ator, poeta, advogado, escritor, bispo da Igreja Ortodoxa Siriana (Olinda) e como se não bastasse foi Rei Momo, duas vezes, do Carnaval do Recife.

Gustavo Krause
Fonte:Blog do Jamildo

Amigos de mais de cinco décadas são uma jóia rara. Tenho alguns que vêm da infância de Vitória de Santo Antão, da vida suburbana do bairro da Torre e da turma do admissão e ginasial do querido e inesquecível Colégio Padre Félix.

Não direi nomes. Fatalmente seria traído pela memória a não ser o de Antonio Enéas Barros Alvarez que, segunda-feira (21), seguiu o caminho do anjo que sempre foi e está a desfrutar a quietude dos céus, reservada aos bons de coração e alma pura.

Mas falarei de saudade, dor e, pasmem, de alegria.

Saudade da casa de meus pais no alto da Torre, abrigo democrático que recebia todos os moleques do bairro, independente de cor, sexo e posição social. Meu pai, diante da danação, dizia: isto aqui é “la maison de la liberté”. Bem que podia adicionar: da igualdade e da fraternidade, dístico revolucionário coerente com a mulher de vanguarda que era minha mãe.

Entre os freqüentadores, inveterados peladeiros e refinados presepeiros, Enéas foi uma presença da qual jamais desgrudamos. Não era moleque. Gordinho, religioso, bem comportado, tinha tudo para não dar liga com aquela incorrigível canalha. Mas deu. A diversidade (e a gente sabia lá o que era diversidade) encantava a todos, sobretudo, porque Enéas, de inteligência superior e requintado senso de humor, cativava todos contando histórias e antecipando o grande ator, escritor, jornalista, poeta, humorista, humanista que a vida adulta iria mostrar a Pernambuco e ao Brasil. Seu proselitismo religioso não converteu ninguém da turma, mas era reverencialmente respeitado.

Em junho, era lei: dia 10 na casa dele com dona Lucy, dia 19 na minha, comemorando a mesma idade, sem falhar uma só vez em mais de meio século.

Percorremos um longo caminho sem desvios ou encruzilhadas, sempre unidos num raro afeto fraternal de respeito, solidariedade e compreensão mútua.

Muito cedo, ele foi acometido pela doença da sociedade moderna: a obesidade, uma epidemia que, hoje, faz mais vítimas do que a desnutrição. Este é um dos sintomas da sociedade dos extremos: nunca se cultuou tanto o corpo e nunca tantos sofrem com a doença dos corpos pesados; nunca se combateu tanto as drogas e nunca se viu um mundo tão viciado; nunca se pregou tanta espiritualidade e nunca o mundo foi tão materialista; nunca se buscou tanto a paz e nunca se fez tanta guerra; nunca a natureza foi tão defendida e nunca o meio ambiente foi tão degradado. E por aí vai.

Entre meus amigos, ninguém revelou tantas potencialidades intelectuais e nenhum, como ele, foi prejudicado por tão cruel adversidade. Sofreu muito. Queixas? Raramente para ouvidos muito íntimos, quando a situação tornava-se insuportável. O fino humor era aperitivo e prato principal oferecidos à legião de amigos leais que nunca o abandonou. Imobilizado por anos numa cama, ainda assim, era o maestro da pândega que animava todos que batiam à sua porta.

Seu paraíso foi o Museu da Cidade no Forte das Cinco Pontas a quem entreguei a direção, quando prefeito. Fez um trabalho admirável, reconhecido por várias gestões. Embora tenha sido seu paraíso, o Museu foi também sua provação. Não me perguntem por quê.

A dor é grande. A saudade é maior. A danada da morte esconde definitivamente as pessoas dos nossos olhos e dos nossos sentidos. Mas não é invencível. Desafio, parca infeliz, que você apague a lembrança dos meus momentos de alegria, de escandalosas gargalhadas, compartilhados com Enéas; desafio que você me faça esquecer Sua Majestade, o Rei Momo, saudando o povão com charme e inteligência, uma espécie de deboche aristocrático que somente ele era capaz de praticar.

Enéas, amigo para sempre, dorme aqui no lado esquerdo do meu peito cada dia mais cansado com o peso das ausências queridas.


*Acrescentamos subtítulo, foto e legenda ao texto original

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