Legisladores conservadores religiosos do Parlamento afegão impediram que fosse aprovada, neste sábado, lei que criminaliza a violência contra a mulher, sob o argumento que parte do dispositivo proposto violava princípios e islâmicos e incentivava a desobediência feminina.
Os direitos das mulheres afegãs, ainda é sufocado por uma interpretação radical do Islã, mesmo depois de mais de uma década da queda do regime Talibã, que mantinha as mulheres virtuais prisioneiras em suas casas.
Khalil Ahmad Shaheedzada, um parlamentar conservador da província de Herat, disse que a lei foi retirada, pouco depois de ser posta em discussão no parlamento, devido ao repúdio causado por integrantes de partidos conservadores e religiosos que consideraram parte da lei, uma afronta ao Islã.
"Tudo o que é contra a lei islâmica, não merece nem ser discutido", disse Shaheedzada.
A Lei sobre Eliminação da Violência Contra as Mulheres está em vigor desde 2009, por decreto presidencial, uma espécie de Medida Provisória, local.
Ela foi levada ao debate no Congresso, numa tentativa de aprovação, pelo parlamentar, Fawzia Kofi, ativista dos direitos das mulheres, que teme uma reversão potencial, no formato em que se encontra, por qualquer futuro presidente que pode revogá-la para satisfazer os partidos religiosos linha-dura.
No mês de abril do próximo ano, haverá eleições para presidente e o atual mandatário, presidente, Hamid Karzai, autor do decreto, está impedido constitucionalmente a tentar uma nova reeleição.
Na lei barrada pela ala conservadora do parlamento afegão, consta a conquista de direitos básicos, como a criminalização da prática de casamento infantil e casamento forçado, e o "baad", que é a utilização da mulher como objeto de troca ou de venda, para a resolução de disputas entre clãs. Também prever a punição de até três anos, no caso de crimes de violência doméstica, e não permite que mulheres vítimas de estupro sofram acusações criminais de fornicação ou adultério.
No parlamento afegão, na chamada câmara baixa, equivalente a nossa Câmara Federal, há 250 assentos, entre os quais 60 ocupados por mulheres, quase todas eleitas em virtude da obrigatoriedade imposta pelas "quotas" constitucionais.
Kofi, revelou desapontado que existem muitas mulheres parlamentares, entre aqueles que se opõem à aprovação do decreto presidencial.
Foto: BBC
UNHAS LIVRES - Mulheres na fila de votação, exibem o título de eleitor e as unhas pintadas, símbolos de liberdade feminina
Na verdade o decreto atual em vigência, não é aplicado em toda a sua plenitude. A análise das Nações Unidas no final de 2011 registrou que apenas uma pequena percentagem dos crimes denunciados contra as mulheres foram investigados pela justiça afegã. Entre março de 2010 e março de 2011 - o primeiro ano completo da vigência do decreto, os promotores formalizaram apenas 155 acusações criminais, dos mais de 2.200 crimes relatados.
A proibição de casamento infantil e a ideia de proteger as mulheres vítimas de estupro foram particularmente os temas que aqueceram os debates no parlamentar, disse Nasirullah Sadiqizada Neli, outro parlamentar conservador da província de Daykundi.
”É errado que a família não possa casar sua filha enquanto ela não tiver 16 anos - disse Obaidullah Barekzai, deputado pela província de Uruzgan, no sudeste, onde os índices de alfabetização de mulheres estão entre os mais baixos do país.
Barekzai argumentou contra quaisquer limites de idade para as mulheres, citando a histórica figura de Hazrat Abu Bakr Siddiq, um companheiro do profeta Maomé, que teria casado a filha quando ela tinha ainda 7 anos. Pelo menos outros oito parlamentares, a maioria do Conselho Ulema, um órgão integrado por clérigos, juntou-se a ele em condenar a proposta de lei como anti-islâmica.
Sob o ponto de vista de Neli, suprimir da tradição afegã, o direito de processar, por adultério, mulheres estupradas, levaria o país ao caos social. E tem uma explicação: “com essas liberdades do mundo ocidental, as mulheres poderiam sentirem-se motivadas a praticarem sexo extraconjugal, sem riscos de punição diante da possibilidade de alegar estupro sempre que forem flagradas em adultério”.
Outro deputado, Mandavi Abdul Rahmani da província Barlkh, que também se opôs a aprovação da lei tem argumento mais radical:
"O adultério é um crime no Islã, seja pela força ou não", disse.
Adiantou ainda que no Alcorão está bem deixa claro que um marido tem o direito de bater numa esposa desobediente como um último recurso, de forma moderada, sem causar-lhe danos permanentes. "Mas essa lei", disse ele indignado, "Diz que se um homem bate na mulher, em qualquer circunstância, deve ser preso de três meses a três anos!”
Para ele a lei reflete valores não aplicáveis no Afeganistão e incentivará a desobediência entre as meninas e as mulheres, aos seus maridos, pais e parentes mais velhos.
Foto: AFP
SEM VÉU - A burca não é obrigatória, e muitas famílias permitem as mulheres mostrarem o rosto em público, embora seja de bom tom manter a cabeça coberta e o resto do corpo oculto pela vestimenta.
A liberdade para as mulheres é uma das mais visíveis e simbólica mudança no Afeganistão desde a campanha norte-americana 2001, que derrubou o regime talibã. Enquanto no poder, o Talibã impôs uma interpretação radicalissima do Islã com restrições severas à vida das mulheres.
Por cinco anos, o regime proibiu as mulheres de trabalhar, incluindo professoras, médicas e, enfermeiras, de ir à escola, ou mesmo de sair de casa sem um “mahram” (marido ou parente do sexo masculino). Em público, todas as mulheres foram forçadas usar a burca, uma vestimenta que cobre todo o corpo e deixa apenas uma cortina a altura dos olhos.
As proibições iam a detalhes, por exemplo, estavam proibidas de falar com vendedores homens; ser tratada por médicos homens (num país onde as mulheres eram proibidas de exercer a medicina); qualquer tipo de maquiagem (muitas mulheres tiveram seus dedos cortados por pintar as unhas); falar ou apertar as mãos de estranhos; rir alto (nenhum estranho deveria sequer ouvir a voz da mulher); usar saltos altos que possam produzir sons enquanto andam, já que é proibido a qualquer homem ouvir os passos de uma mulher; praticar qualquer tipo de esporte ou mesmo entrar em clubes e locais esportivos; andar de bicicleta ou motocicleta, mesmo com seus “mahrams”; usar roupas que sejam coloridas ou, na concepção talibã, “que tivessem cores sexualmente atrativas”.
Não parava por aí, era proibida também a participação de mulheres em festividades; lavar roupas nos rios ou locais públicos; aparecer nas varandas de suas casas; usar calças compridas mesmo debaixo da burca; se deixar fotografar ou filmar e muito menos cantar.
Por outro lado o testemunho de uma mulher valia, e informalmente ainda vale, a metade do testemunho masculino e a mulher não podia recorrer à Corte diretamente – isso tem que ser feito ao lado de um membro masculino da sua família. Sabe-se que essa tradição ainda não foi desincorporada, e por isso, a violência doméstica fica impune, pois a mulher teria que estar acompanhada do agressor, ou de outro membro masculino de destaque na família do marido, sogro, avô etc. para prestar a queixa.
O impasse legislativo do sábado refletiu o poder dos partidos religiosos. Embora o decreto continue em vigor, mesmo que vagamente aplicado é melhor que nada. Tecnicamente o parlamento pode ainda neste ano voltar a discutir a questão, dependendo do resultado do parecer de uma comissão, nomeada na ocasião, que examinará a possibilidade.
Algumas ativistas, entre elas, Heather Barr, pesquisadora da Human Rights Watch, se dizem preocupadas com possíveis mudanças na lei, com a certeza que os conservadores vão procurar enfraquecê-la -, retirando as disposições que não lhes agradam - ou mesmo revogá-la, na totalidade.
Os temores tem fundamentos quando se ouve parlamentares como Abdul Sattar Khawasi, membro da província de Kapisa, chamar os abrigos para mulheres vítimas de violência, como um lugar "moralmente corrompido" e o Ministro da Justiça, Habibullah Ghaleb, que declarar que considera esses abrigos de mulheres vitimadas, com casas de "prostituição e imoralidade".
Junta-se ao grupo o deputado Rahmani, que lamenta que o presidente Hamid Karzai tenha elaborado decreto, que segundo ele precisa ser mudado ou revogado
"Não podemos ter um país islâmico, com leis basicamente ocidentais", concluiu ele.
EXEMPLO DE VIOLÊNCIA AFEGÃ CONTRA MULHERES
Foto: Film Magic; Associated Press
No dia 09 de agosto de 2010 a revista Time publicou em sua capa a foto de uma garota afegã mutilada. A fotografa sul-africana Jodi Bieber, encontrou Bibi Aisha, 18 anos, em um campo de refugiados em Kabul e contou a sua história para o mundo.
O tio de matou um homem e como indenização precisou oferecer duas sobrinhas para a família da vítima. Ela foi aprisionada no estábulo até o dia em que menstruou sendo então entregue ao homem que seria seu futuro marido, que lhe submeteu a sucessivas torturas e espancamentos. Bibi fugiu mas, andando sozinha na rua sem a companhia de um homem, foi imediatamente presa.
Seu pai a encontrou na prisão após quatro meses, mas foi obrigado devolvê-la a família do marido. Como punição, ela foi segurada pelos cunhados e o marido arrancou seu nariz e orelhas com uma faca, pela ousadia da desobediência. Logo após o evento, o sogro de Bibi foi visto andando com seu nariz pelas ruas como se fosse um trofeu enquanto era deixada para morrer nas montanhas.
Bibi Aisha foi salva por um grupo de civis que faziam trabalho humanitário no Afeganistão. Após ser encontrada por Jodi Bieber e ser capa da Time, ela foi para os EUA onde recebeu atendimento de psicológos e passou por cirurgias de reconstrução.
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