Amor à Vida - A ascensão da “bicha má”, de Luís Antônio Giron, para a Época
BRASIL – Entretenimento Amor à Vida - A ascensão da “bicha má” O Brasil está preparado para Félix, de "Amor à Vida", o primeiro vilão gay da história das novelas? Talvez não Foto: Rede Globo Postado por Toinho de Passira Meu doce, eu tenho uma notícia amarga para lhe dar: Félix virou o assunto mais ventilado do Brasil. Dos salões de cabeleireiro às redes sociais, as falas do personagem magistralmente interpretado pelo ator Mateus Solano na novela Amor à vida, de Walcyr Carrasco, da TV Globo, são instantaneamente convertidos em memes. Suas frases viram moda tão logo ele as pronuncia. A expressão “meu doce” já se consagrou. E isso em apenas duas semanas de exibição da nova novela das nove da noite. Félix é herdeiro do doutor César Khoury (Antônio Fagundes) um médico milionário, que mantém o Hospital San Magno em São Paulo. Ele disputa a herança com a irmã Paloma (Paolla Oliveira). Félix a inveja e tem certeza de que ela foi adotada. Ele trabalha como administrador do San Magno. Pratica corrupção, assédio moral e assédio sexual. Nada de novo: a ação gira em torno do microcosmo médico, evocando uma espécie de E.R. à brasileira. A trama também contém um enxame de personagens, suspense e cenas bregas que lembram a matriz mexicana do gênero. Mas Walcyr Carrasco teve uma fagulha genial ao construir a personagem de Félix. Porque ele é um vilão como nunca houve. Pela primeira vez na história da novela brasileira, surge um homossexual sacripanta, insidioso e repleto de peculiaridades. No primeiro capítulo, roubou o bebê recém-nascido de Paloma e o jogou em uma caçamba de lixo. Mas Félix disfarça: finge ser amiguinho da irmã. Mantém um casamento de fachada com Edith (Barbara Paz). O casal tem um filho, Jonathan adolescente revoltado e quase delinquente vivido pelo jovem ator Thales Cabral, que imita o personagem-título do filme Precisamos falar de Kevin (2011), baseado no romance da americana Lionel Shriver. Mantendo as aparências, Félix se relaciona com parceiros masculinos. Quando é flagrado pela mulher encontrando-se com “anjinho” em um shopping center, promete que nunca mais fará isso. Seu pai tem certeza de que conseguiu livrá-lo do homossexualismo, orientando-o para o casamento e o tédio da vidinha de classe média. Mas Félix não consegue se conter: ele dá em cima de homens que trabalham no hospital com a mesma gana com que rouba o dinheiro da instituição e pratica crimes. Walcyr está conseguindo criar um bandido capaz de ombrear com Nazaré Tedesco e Carminha, só para citar as vilãs mais famosas do século. Félix está sendo chamado nas redes sociais e nos comentários de feira e salão de beleza de “a bicha má”. Algumas de suas pérolas mostram que ele faz jus ao apelido depreciativo. “Abri uma frestinha na porta do armário. Dei uma escapadinha para fora. Eu entro no armário de novo e tranco a porta. Boto cadeado, juro!”, diz a Edith, prometendo que nunca mais vai se envolver com homens. Sobre a trambiqueira Márcia (Elizabeth Savalla), ex Tetê-Pára-choque: “Se é ex-chacrete já deve ter despencado. A gravidade é um crime contra a mulher”. Não é menos cruel com mamãe: “Genética não tem nada a ver com cabelo tingido. Mamãe não deve nem lembrar a cor original do dela.”
Ao namorado da irmã, Bruno (Malvino Salvador), ele dispara: “Você deve ser um ótimo corretor. Vendeu o apartamento e levou minha irmã de comissão.” Depois de contratar um médico bonitão, exclama: “Mãos hábeis. Ai, que vontade de ter uma apendicite!” E quando finge sentimento, declara: “Por todas as contas do rosário. Eu estou sem palavras de tanta emoção!” O Brasil popular tem um brinquedo para se divertir, enfim. Até pouco tempo, os gays - que já comparecem em peso nas novelas - eram retratados com ares de açúcar. Isso a ponto de muitas meninas telespectadoras sonharem se casar com gays. Eram criaturas atraentes, divertidas, coloridas, adoráveis. O mais recente foi Crô (Marcelo Serrado), de Fina Estampa, figura tão apaixonante que está ganhando um filme com ele como figura central. Os realizadores de televisão e de cinema do mundo inteiro tendem a mostrar os gays de forma complacente e politicamente correta. A aparição de Félix, portanto, quebra um tabu. Os gays já estariam assimilados a tal ponto que já podem assumir na ficção contornos mais realistas sem ofender a comunidade GLBT nem o público em geral. Máscaras de Félix poderiam brilhar na próxima Parada Gay de São Paulo com sucesso. Pena que não seja bem assim. A dúvida é se o Brasil já está preparado para a “bicha má”. É preciso observar se o público será capaz de distinguir as falhas de caráter da condição homoerótica do personagem. Sabe-se que o telespectador não consegue nem separar atores de personagens, quanto mais nuances psicanalíticas. São comuns os casos de atores ofendidos e apedrejados nas ruas por seus papéis na televisão. O último deles foi o ator Nando, que fazia o malandro traidor Pescoço em Salve Jorge, perseguido por mulheres ofendidas. O público adora odiar vilões mais ou menos ambíguos. As malvadezas de Félix podem, sim, reforçar os estereótipos do homossexual (malícia, cinismo, frases ferinas, vaidade excessiva) e provocar mais atos de homofobia, como os que ocorrem em cidades com fama de evoluídas, como São Paulo. A presença ostensiva do personagem todas as noites nos lares brasileiros funciona como um teste de tolerância. Se as multidões que veem novela conseguirem compreender que Félix é malvado não por causa de sua homossexualidade e sim de seu caráter, então o Brasil terá mudado. Duvido, meu doce... O sucesso de Félix é análogo ao preconceito ao homossexual que ainda vigora no Brasil. Como obra de ficção, a novela não tem culpa de fazer emergir esse tipo de reação. Luís Antônio Giron é editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV *Alteramos o título, acrescentamos foto e legenda a publicação original |
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