Cesar Cielo o soberano das piscinas de Roma
O jornal italiano Gazzetta dello Sport, saudou o brasileiro, em manchete: Santo Cielo! La gara perfetta del figlio di Dio
Foto: AP
Fontes: Gazzetta dello Sport , Estadão , Revista Veja
César Cielo, 22 anos, 1,95 metro e 88 quilos, o nadador paulista, descendente de italianos, dominou Roma, a cidade dos césares realizando a maior proeza de um nadador brasileiro na história dos Mundiais de Natação, na piscina central do Foro Itálico, ganhou duas medalhas de ouro nos 50 e nos 100 metros, esse último acompanhado de um recorde mundial.
O último recorde mundial brasileiro numa piscina foi obtido em 1982, com Ricardo Prado, então aos 17 anos, nos 400 metros medley. Antes, a única marca fadada a permanecer nas enciclopédias foi a de Manuel dos Santos, também nos 100 metros, em 1961.
Cielo, no entanto, é o primeiro brasileiro a ser campeão mundial e olímpico.
A polêmica do maiô tecnologico
Foto: Gregorio Borgia/AP
Fontes: Revista Veja
Ao deixar a piscina do Foro Itálico, abraçado pela imponência de um conjunto esportivo construído nos anos 1930 por Benito Mussolini, Cielo ainda exibia manchas vermelhas dos tapas no peito e nas pernas que ele mesmo se aplica antes de cair na água em gesto de autoflagelação que ajuda a empurrar a adrenalina às alturas.
Uma hora antes da quente tarde romana, Cesar Cielo entregou-se a uma liturgia estranha que há algum tempo se tornou comum nas salas de aquecimento das competições de nado.
Durante quarenta minutos, com a ajuda de dois membros da delegação brasileira na Itália, concentrado a ponto de se ouvir sua respiração, Cielo sentou-se numa cadeira. Pôs um saco plástico nos pés e, com o auxílio de luvas cirúrgicas, começou o processo de vestir o maiô de competição feito com material especial e tecnologia da Nasa.
De tão ajustado, o maiô é quase aplicado sobre a pele como se fosse um adesivo. De tão fino, exige que o nadador use luvas cirúrgicas, pois um fiapo de unha mais afiado pode rasgá-lo.
Passar pelo plástico nos pés, escorregadio, foi fácil. Depois, num movimento lento e minucioso, com dedos a eliminar as saliências, a segunda pele de poliuretano foi cobrindo o restante do seu corpo.
Há muita controvérsia, como nunca houve em nenhum outro esporte, em torno dos maiôs, aqueles que levam até quarenta minutos para entrar no corpo, comprovadamente úteis na melhora dos tempos, "doping de armário", como são conhecidos entre os nadadores.
Foto: Reuters
Cielo, em Roma, vestiu um X-Glide da Arena que ele mesmo ajudou a desenvolver, e que o faz parecer o Batman, como comparou certa vez Flávia, a mãe do campeão
De sunga de algodão, como Johnny Weissmuller, ou bigodudo e peludo como Mark Spitz, Cielo certamente seria um gigante de mesmo quilate.
A tecnologia não o diminui - assim como seu desempenho nada subtrai da tecnologia, vital em tudo, hoje. Mas já não há dúvida de que as peças modernas fazem diferença.
"Um nadador cansado tende a afundar", diz o nadador Fernando Scherer. "Com essa família de maiôs, o corpo flutua, e perdem-se menos tempo e energia na piscina." Para Scherer, nivela-se a turma de baixo, de piores marcas, "mas entre os primeiros há pouca influência".
Não é o que acha, hoje, o maior vencedor de todos os tempos, o americano Michael Phelps, oito medalhas de ouro em Pequim, catorze somando-se as vitórias de Atenas. Pode soar mentiroso, mas Phelps perdeu em Roma na semana passada - perdeu e pôs a culpa na roupa. Phelps tinha o recorde mundial dos 200 metros, com o tempo de 1min42s96. O alemão Paul Biedermann, com 1m42s, o superou.
O americano ostentava um maiô do ano passado. Biedermann, um X-Glide da Arena como o de Cielo. Menos de um ano os separa, e a vestimenta de Phelps parece uma armadura medieval quando confrontada com a do vencedor em Roma. Nos 100 metros de Cielo, o tempo do 16º colocado, impulsionado pela vestimenta, o levaria ao ouro no Mundial de 2007. Em apenas dois anos, foram batidos mais de 100 recordes mundiais - o triplo do habitual, quando a Lycra era regra. Fotos: Reuters
Phelps irritado com uma medalha de prata, perdeu para o nadador ou para o maiô?
Irritado com avanços tão espetaculares, especialmente o de Biedermann, que melhorou quatro segundos em apenas um ano, o treinador de Phelps, Bob Bowman, ironizou.
"Michael demorou de 2003 a 2008 para baixar de 1min46 para 1min42s96, e esse cara consegue em onze meses? É um programa de treinamento fantástico, gostaria de saber qual."
Phelps, incomodado no segundo lugar do pódio, que nunca lhe cabe, tentou diminuir a marola. "Perdi para um nadador." Foi modesto porque sabe ter usado maiôs de última geração, e por meio deles aumentou ainda mais a distância que o separa do comum dos mortais. Mas logo Phelps também mergulhou na polêmica.
"A gente não fala mais de nadadores, mas de roupas de competição", diz. Scherer resume a atual temporada nas raias: "Agora, quando tratarmos de natação, teremos a era pré-maiô e a era pós-maiô".
O "pós-maiô", a rigor, deve vir mesmo no ano que vem. Em Roma, na semana passada, a Federação Internacional de Natação (Fina) anunciou a formação de um grupo de especialistas, chefiados por Jan-Anders Mason, do Instituto Federal Suíço de Tecnologia, para definir o que poderá ou não ser usado.
No centro da decisão, os cientistas tentam estabelecer o que é têxtil ou não, o que é pano ou não. A Fina defende a utilização de "material composto de fios naturais e/ou sintéticos, individuais e não consolidados", o que excluiria as roupas de poliuretano.
Os homens só poderão nadar com bermuda abaixo do umbigo e as mulheres com collant que não pode cobrir o pescoço nem passar dos ombros. O material não poderá revestir o corpo abaixo dos joelhos nem ter zíper.
O limite de flutuabilidade também será reduzido para 0,5 newton, metade do patamar atual, podendo cair a zero. Newton é a unidade de força necessária para acelerar uma massa de 1 quilo a um ritmo de 1 metro por segundo ao quadrado.
ESTRAGO NA PRIMEIRA VEZEm maio, no Rio, durante o Torneio Maria Lenk, ao vestir o X-Glide que acabara de desenvolver, Cielo o rasgou na altura da coxa direita Foto: Ivo Gonzales/Ag. O Globo |
Em outras palavras: nada que ajude a boiar será autorizado. "Com as novas regras da Fina será quase impossível desenvolver trajes com tecnologia capaz de ajudar a produzir novos recordes", diz Renato Hacker, diretor da Speedo no Brasil. Os maiôs espaciais, desenvolvidos com o apoio da Nasa e de empresas de navegação, custam de 1 500 a 1 800 reais e são usados de duas a cinco vezes, no máximo. Há uma encrenca à vista. Quando os maiôs forem proibidos, se forem proibidos, o que fazer com os recordes mundiais? Cancelá-los, o que significaria tirar a marca de Cielo? A Fina, em maio, reprovou 146 de 348 modelos testados - inclusive uma versão anterior do X-Glide, agora modificado para obedecer ao controle oficial. Estudiosos acreditam que, caso os maiôs sejam mesmo vetados, os recordes voltarão a cair no ritmo de antes, de quatro em quatro anos, nos ciclos de treinamento olímpico. Na década de 1980, quando foi mudado o centro de gravidade dos dardos, todos os recordes de lançamento de dardo no atletismo foram anulados, e partiu-se do zero. É medida que mataria a natação, esporte que depende de comparações para criar mitos. "Todas as modalidades impuseram limites à ciência e, no entanto, fabricantes e atletas nunca pararam de buscar avanços", diz Darren Stefanyshyn, do Laboratório de Performance Humana da Universidade de Calgary. "Remover toda a tecnologia não é solução." Phelps já foi chamado, inúmeras vezes, de "o Michael Schumacher da natação". Mas seu esporte nunca quis ser como a Fórmula 1, na qual os competidores pulam de patrocinador para patrocinador, de escuderia para escuderia, em busca do melhor equipamento dentro dos limites estabelecidos. Até muito recentemente, todos os maiôs eram feitos, na maioria dos casos, do mesmo modo. O sucesso nas piscinas era dado apenas por treinamento, talento e tenacidade. No ano passado, com a introdução dos modelos de poliuretano, deu-se o início de uma estranha revolução. "É o caos", diz Mark Schubert, diretor da Federação Americana de Natação. "Vi nadadores correndo atrás de vendedores de maiôs em Roma entre uma prova e outra, como se estivessem numa feira." Deu-se o ápice do desespero quando dois atletas, nas preliminares dos 100 metros de Cielo, foram desclassificados por ter usado um segundo maiô, um sobre o outro, tentando ampliar a flutuabilidade. Ficou ridículo, e pior ainda ao serem flagrados na contrafação.
Foto: Gazzetta dello Sport
Vestir um segundo modelo talvez impedisse a nadadora italiana Flavia Zoccari de mostrar o bumbum, nos Jogos do Mediterrâneo, em julho, quando seu Jaked J01 se rasgou inapelavelmente. Constrangida, chorando, ela abandonou a prova.
Cielo, na primeira vez que vestiu o X-Glide, em maio passado, no Troféu Maria Lenk, no Rio, atrapalhou-se e também estragou o uniforme, na altura da coxa. Tudo por centésimos de segundo a menos. No caso de Cielo, convém lembrar, mesmo pelado será sempre um herói. Um herói brasileiro, enfim.
Foto: Gongolo/Flickr
Em Roma, ele só perdeu em popularidade para a bela italiana Federica Pellegrini, (fotos) que, antes de conquistar as medalhas de ouro nos 200 e 400 metros, posou nua para uma revista. Gritos da torcida no Foro Itálico interrompiam o silêncio que antecede o tiro de largada quando, em movimento ritualístico, ela dava um soco com o punho fechado no lado esquerdo do peito, bem na altura do coração. Depois, punha o dedo no meio da testa, como se estivesse fazendo uma mentalização.
Ela e Cielo são os césares de Roma. |
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