7 de mai. de 2012

Os dois senadores

OPINIÃO
Os dois senadores
O Conselho de Ética se prepara para cassar o mandato de Demóstenes Torres — político elogiado pelo comportamento exemplar, mas que tinha uma vida paralela

Foto: Orlando Brito/Congresso em Foco

Solidão em plenário: ex-líder da oposição amarga desconfiança dos colegas

Gustavo Ribeiro
Fonte: Veja - 07/05/2012

Durante nove anos de mandato, Demóstenes Torres construiu uma sólida carreira no Senado. Era admirado por governistas e oposicionistas como um político de primeira linha, implacável no combate à corrupção, defensor dos valores republicanos e talhado para o debate qualificado de projetos de interesse do país. Parlamentar em permanente ascensão, tornou-se a reserva moral de um Congresso que, segundo os próprios integrantes, perdia qualidade e moralidade ano após ano. Por isso, Demóstenes despontava como favorito para representar o DEM, seu antigo partido, na sucessão presidencial de 2014. Despontava. O outrora poderoso Demóstenes é agora um político extinto. Caminha para o cadafalso desde março, quando VEJA revelou em primeira mão que ele fora gravado pela Polícia Federal em conversas telefônicas com Carlinhos Cachoeira. O senador mostrou-se um ativo integrante de uma quadrilha especializada em explorar jogos ilegais e levantar contratos para empreiteiras na administração pública. Demóstenes foi pego praticando aquilo que condenava em público. Não é o único político com pecados e rabo preso com seus patrocinadores financeiros. Mas foi apanhado em flagrante, revelando-se um falso moralista.

Pois é esse Demóstenes alinhado à contravenção que, desde a semana passada, responde a processo por quebra de decoro parlamentar no Conselho de Ética do Senado. O colegiado decidirá se deve ser cassado o mandato do parlamentar. Em seguida, remeterá o caso para o plenário da Casa. Todas as apostas apontam para a perda do mandato. Nesse embate, o principal algoz de Demóstenes, o político outrora bem-sucedido, será justamente o Demóstenes defensor dos interesses da jogatina. O relator do processo no Conselho de Ética, o petista Humberto Costa, mostrou que o senador Demóstenes mentiu ao dizer que tinha apenas uma relação de amizade com Carlinhos Cachoeira e que sempre se posicionara contra a legalização dos jogos de azar. Costa lembrou que Demóstenes discursou a favor da legalização dos jogos em 2003. No ano seguinte, votou contra a medida provisória editada pelo presidente Lula que proibia a exploração dos bingos e de máquinas caça-níqueis. Assim, as relações promíscuas entre o político e o contraventor estariam configuradas. Além do mais, Demóstenes mentiu — e a mentira, lembre-se, foi o motivo da única cassação de mandato da história do Senado, aplicada a Luiz Estevão, em 2000.

As decisões sobre a perda de mandato são políticas e independem de provas cabais ou ritos observados na Justiça. No caso de Demóstenes, pesa sobremaneira o fato de ele ter se destacado como um personagem de dupla personalidade. Durante as investigações da Polícia Federal, que monitorou as atividades de Carlos Cachoeira, descobriu-se que o contraventor pagava despesas pessoais de Demóstenes e o remunerava por serviços de lobby realizados e governos estaduais e órgãos federais. Quando surgiram as primeiras evidências da ligação de Demóstenes com Cachoeira, seus pares no Senado se recusaram a acreditar. Embalado pelo prestígio construído ao longo de quase uma década, Demóstenes recebeu manifestações de apoio de mais de quarenta senadores de todos os partidos, que foram à tribuna defendê-lo. Os senadores ainda estão perplexos com a revelação do lado obscuro do colega. “Naquele dia defendi o parlamentar que conhecia. Um homem que se mostrava correto. Ele nunca havia dado sinal algum de comportamento antiético”. disse o senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE) na semana passada.

A sucessão de revelações constrangedoras minou o apoio político a Demóstenes. Primeiro, ele foi obrigado a se desligar do DEM. Agora, está prestes a ter o mandato cassado. Nas conversas gravadas pela PF, Demóstenes aparece supostamente recebendo do contraventor instruções diretas sobre como deveria se comportar no Congresso em matérias do seu interesse. Outros trechos falam das contrapartidas recebidas: eletrodomésticos importados de última geração, viagens de avião e até uma encomenda especialíssima, garrafas do vinho francês Château Cheval Blanc, safra de 1947, cujo preço unitário pode passar de 10000 dólares. Segundo o procurador-geral da República. Roberto Gurgel, o senador teria recebido do contraventor cerca de 3,1 milhões de reais em dinheiro. Houve uma mistura inequívoca de interesses públicos e privados, circunstância que teria provocado no antigo Demóstenes, o público defensor da ética, uma reação colérica.

O Demóstenes desmascarado pediu prorrogação de prazo para fazer sua defesa. Ao Supremo Tribunal Federal (STF) solicitou a exclusão de todas as escutas telefônicas do rol de provas do processo. Por ter foro privilegiado, alega que não poderia ter sido gravado sem autorização prévia do STF. “São escutas ilegais, que extrapolam a competência da PF e carecem de perícia”, disse Antônio Carlos de Almeida Castro, advogado do senador. Os congressistas tendem historicamente a relevar desvios de conduta de colegas. Não será o caso agora. Os senadores sentiram-se traídos por Demóstenes, que durante muito tempo posou de vestal e deu lições de moral aos colegas. Demóstenes encarna à perfeição a frase atribuída ao maior presidente americano, Abraham Lincoln: “Você pode enganar uma pessoa por muito tempo; algumas por algum tempo; mas não consegue enganar a todas por todo o tempo".

Foto: Orlando Brito/Congresso em Foco

As estranhas cicatrizes, atrás das orelhas do senador, não tem nada a ver com o escândalo: foram resultado de cirurgia plástica para retirada do excesso de pele no pescoço depois da cirurgia bariátrica a que o senador se submeteu em 2009


*Acrescentamos subtítulo, foto e legenda ao texto original
**Utilizamos fotos do site Congresso em Foco, do fotografo Orlando Brito

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