30 de mar. de 2010

ARMANDO NOGUEIRA: O poeta da arquibancada

ARMANDO NOGUEIRA
O poeta da arquibancada
As palavras acomodavam-se no seu texto, como flores silvestres pelas encostas: espontâneas, mas suficientemente organizadas para transmitir encantamento. O que escrevia era tão verdadeiro quanto ele, um escravo da verdade. Sabia o tom exato de transmitir uma notícia, sem ferir os ouvidos, mas sem perder o quique do realismo. Noticiava com uma precisão desconcertante de um drible de Garrincha, com a força precisa como uma falta batida por Zico, com a perfeição de um passe de Pelé, para si mesmo.

Toinho de Passira
Fontes: Portal do Flamengo, G1, Epoca Negócios, Estadão, EPTV

Como escrever sobre Armando Nogueira se as palavras estão todas prostradas no velório do Maracanã. Pedro Bial foi quem primeiro sentiu falta. Assim que soube da morte do mestre sacramentou “as palavras estão órfãs”.

Bem que Armando podias ter deixado uma crônica feita, para nos poupar do vexame de matraquear o teclado em vão.

A neta e biografa de CAYMMI, Stella Caymmi disse que “Dorival Caymmi via beleza onde ninguém desconfiava.“ Foi com esse dom que Armando Nogueira viu poesia no futebol.

O fato de ter sido velado no Maracanã dá a dimensão do seu tamanho.

Todos os grandes jornalistas brasileiros que admiramos, declaram-se seus ex-alunos desolados. Dizem que ele inventou o Jornal Nacional, O Globo Repórter, mas ele inventou o telejornalismo brasileiro. Foi ele quem inventou a obrigação de ouvir o outro lado da notícia.

Todos os outros jornais televisivos de todas as outras emissoras e da própria Globo são netos e bisnetos seus.

Dizem que ele saiu da Globo, pois os Marinhos fizeram campanha a favor de Collor e editaram um debate entre Collor e Lula, de foram a favorecer o governador alagoano. Não que torcesse por Lula, ou não, na verdade era fã ardoroso e inarredável da verdade.

Teria dito palavra dura ao seu amigo e patrão Roberto Marinho e pediu demissão.

Não se conformava terem vilipendiado o Jornal Nacional.

Os marinhos foram levando sua indignação com a barriga, até que ele um ano depois disse que não dava mais para ficar e saiu.

Dedicou-se integralmente aos seus hobbies de voar de ultraleve, de tocar gaita e produzir primorosos escritos.

As palavras eram suas amantes cúmplices. Enfileiravam-se arrumadas nos seus textos, como em nenhum outro, orgulhosas de fazerem parte daquele momento literário mágico. Rimavam aqui e ali e metrificavam-se ritmadas, numa prosa que sem perder o rumo de prosar, poetizava a realidade.

Não resistimos à tentação de repetir algumas de suas grandes frases, que estão estampadas em todos os jornais nos últimos dias.

Mas como falar de Armando Nogueira sem repetir o que ele disse.


Pelé e o Papa fã, Paulo VI
Sobre Pelé - “Não cabe discussão: o maior atleta do século XX é Pelé. Há de ser escolhido por aclamação celestial. Tenho tal convicção desde o dia em que vi, há muitos anos, na primeira página do jornal "The Observer", de Londres, uma foto com a seguinte legenda: "Pelé e um fã". O fã era o Papa.

Até as tragédias tinham um tom de menos dolorido através das suas palavras: quando o ex-gremista Dener, um atleta que ele admirava pelo seu vistoso futebol morreu em um acidente automobilístico, Armando escreveu:

"A morte o surpreendeu enquanto ele dormia. Se ele estivesse acordado, até ela seria driblada."

E disse mais:

"No futebol, matar a bola é um ato de amor";

"Se Pelé não tivesse nascido homem, teria nascido bola";

"O futebol não aprimora os caracteres do homem, mas sim os revela";

"Para Garrincha, a superfície de um lenço era um latifundio";

"A bola em si, ela é um elemento fascinante, é um brinquedo sedutor, é um brinquedo mágico, que adiciona poesia e lirismo na sua relação com o homem";

"Ademir da Guia, tens o nome, o sobrenome e a bola do craque";

"Arthur Friedenreich jogava Futebol com o coração no peito do pé. Foi ele quem ensinou o caminho do gol à bola brasileira";

"Até a bola do jogo pedia autógrafo a Pelé";

A melhor maneira de desnudá-lo é exibir duas das suas crônicas, veja o que ele escreveu no O Globo, no dia em que Zico se despediu do Flamengo.

A última noite de Zico
Por Armando Nogueira

Maracanã, enfeita de bandeiras tuas arquibancadas que hoje é dia de festa no futebol. Encomenda um céu repleto de estrelas. Convida a lua (de preferência, a lua cheia). Veste roupa de domingo nos teus gandulas. Põe pilha nova no radinho do geraldino. E, por favor, não esquece de regar a grama (de preferência, com água-de-cheiro).

Avisa à multidão que ninguém pode faltar. É despedida do Zico e estou sabendo, de fonte limpa, que, hoje à noite, ele vai repartir conosco a bela coleção de gols que fez nos seus vinte anos de Maracanã. Eu até já escolhi o meu: quero aquela obra-prima, o segundo gol do Brasil contra o Paraguai nas Eliminatórias do Mundial de 1986. Lembro-me como se fosse hoje. Zico recebe de Leandro um passe de meia distância já na linha média dos paraguaios. Um efeito imprevisto retarda a bola uma fração de segundo. Zico vai passar batido - pensei. Pois sim. Sem a mais leve hesitação, sem sequer baixar os olhos, ele cata a bola lá atrás com o peito do pé, dá dois passos e, na mesma cadência, acerta o canto esquerdo do goleiro paraguaio.

Passei uma semana vendo e revendo no teipe aquele instante mágico de um corpo em harmonioso movimento com o tempo e com o espaço. E a bola, coladinha no pé, parecia amarrada no cadarço da chuteira. Um gol de enciclopédia. Se o amável leitor aceita uma sugestão, dou-lhe esta: escolha um dos gols que Zico fez graças à sua arte singular de chutar bola parada.

Chutar a bola de falta à entrada da área é um talento que Deus lhe deu mas não de mão beijada, como imaginam os desavisados. Zico trabalhou seriamente, anos e anos, para alcançar a perfeição dos efeitos sublimes. À tardinha, quando terminava o treino, ele costumava ficar sozinho no campo do Flamengo - ele, uma barreira artificial, uma bola e uma camisa caprichosamente pendurada no canto superior das traves. A camisa era o alvo.

Zico passava horas sem fim, chutando rente à barreira e derrubando a camisa lá de cima das traves. Chegava o domingo, na cobrança da falta, a bola já estava cansada de saber onde ela tinha que entrar. Não tenho dúvida em dizer que tardará muito até que apareça alguém que domine como Zico o dom de cobrar falta ali da meia-lua.

Celebremos, querido torcedor, a última noite do maior artilheiro da história do Maracanã. Será uma despedida de apertar o coração. Se te der vontade de chorar, chora. Chora sem procurar esconder a pureza da tua emoção. Basta uma lágrima de amor para imortalizar o futebol de um supercraque.

Cantemos, Maracanã, teu filho ilustre, relembrando em comunhão os dribles mais vistosos, os passes mais ditosos, os gols mais luminosos desse fidalgo dos estádios que tem uma vida cheia de multidões.

Louvemos o poeta Zico que jogava futebol como se a bola fosse uma rosa entreaberta a seus pés.

Armando Nogueira trai de quando em quando o futebol, com outros esportes, a maioria envolvia uma bola. Vejam a crônica que ele escreveu para a rainha do basquete Hortência.

Nada mais há a dizer, por desnecessário.


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