“Quando os problemas se tornam absurdos,
os desafios se tornam apaixonantes.”
Dom Hélder CâmaraToinho de Passira
Passei dias tentando falar de D. Helder Câmara, que se estivesses vivo, teria feito cem anos, ontem e acabei publicando, esse depoimento, um dia depois do apropriado. O conheci pessoalmente, embora não privasse da sua intimidade, como o fez Ricardo Noblat: era um frágil homem mirrado, baixinho, precocemente enrugado, com olhos enormes cercado por bolsas de rugas e olheiras negras, cabelo ralo e uma testa marcada por sulcos profundos.
Deus escolhera aquele corpo pequenino e pouco gracioso, para habitar uma grande alma. Tinha um sorriso paralisante, que encantava platéias, de católicos, ateus e comunistas. Assim entre seus amigos mais chegados havia pessoas que de longe, nunca professará a religião católica ou qualquer uma.
Há alguns anos atrás, após a morte de Dom Helder, um desses comunistas juramentado, defendendo a beatificação de Dom Helder, (o primeiro passo para que seja consagrado santo) como fosse uma beata de sacristia.
Foi ele quem comentou que o Arcebispo de Olinda e Recife, vestia por muito tempo as mesmas batinas, que começavam por vezes a desbotar de tantas lavagens e tomar o aspecto de surrada, sem que ele se desse conta. Não fosse algum padre, algum trabalhador da diocese providenciasse novas vestimentas, ficava ele assim, cada vez mais parecido com os pobres que tanto protegia.
Quando optou por não morar no Palácio dos Manguinhos, a suntuosa sede do Arcebispado de Olinda e Recife, onde residiram todos os bispos que por aqui estiveram, causou espanto. Escolheu a modesta casa paroquial da igreja que tinha o sugestivo nome de Igreja das Fronteiras, porque ficava mais fácil das pessoas comuns fazerem contatos com ele.
Uma casa modestíssima, de poucos cômodos, a porta estava a menos de metro e meio do portão. Não tinha campainha, batiam-se palmas para falar com o arcebispo, no começo todo mundo se surpreendia, por ser ele mesmo quem vinha muitas vezes atender a porta. (na foto a sala princapal onde Dom Helder recebia todos quanto lhe procurava)
Neste lugar modesto, simples, com poucos móveis, recebia todas as autoridades do Estado, governadores, desembargadores, senadores, gente estrangeira, principalmente depois que se aposentou em 1985, e lá continuou recebendo com hospitalidade e carinho poderosos e humildes do mesmo jeito que acontecia quando era Bispo famoso.
Sua fama correu mundo e todos os brasis. Recebeu título de doutor “honoris causa”, das mais importantes universidades brasileiras, e algumas no exterior, como a Universidade de Saint Louis, Estados Unidos e outras tantas na Bélgica, da Suíça, Alemanha. Holanda, Itália e Canadá.
Foi intitulado Cidadão Honorário de 28 cidades brasileiras e da cidade de São Nicolau na Suíça e Rocamadour, na França.
Recebeu o Prêmio Martin Luther King, nos EUA e o Prêmio Popular da Paz, na Noruega e diversos outros prêmios internacionais. Foi indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel da Paz.
Aprenderá inglês já adulto e falava no estrangeiro com certa dificuldade e carregado sotaque cearense, que se orgulhava em conservar. Comentava entre amigos, que alguns estrangeiros desavisados, nas conferências internacionais freqüentemente perguntavam se ele era texano. Foi assim que se ficou sabendo que o sotaque cearense e o texano são semelhantes.
Quando falava usava os braços como que quisesse ficar maior, clamar aos céus, pedindo bênçãos para as suas ovelhas. Tinha sempre uma expressão sorridente, contrastando com os olhos lacrimejantes, como se estivesse sempre a ponto de chorar, pela emoção de suas próprias palavras.
Não raro divida as suas experiências pessoais, para demonstrar que sempre estava precisando aprender, a ser humilde, a ouvir os desvalidos e não se sentir importante.
Certa vez numa pregação contou que estivera na Índia, ou num país daquela região com Madre Tereza de Calcutá, que como ele, era "franzina" e tratada como uma celebridade em todo o mundo. (Na foto com o Papa João Paulo II)
Disse ele que ela estava em estado de oração, esperando ser chamada junto com ele, para compor uma mesa de conferência. Afirmou que perguntou a indiana, como ela fazia para não ficar vaidosa diante de tanta aclamação. Dom Helder disse que Madre Tereza, respondeu que quando Jesus entrou em Jerusalém, no chamado domingo de ramos, foi aclamado pelo povo, e que estava montado num jumento, e por estar conduzindo Jesus, o jumento também foi aplaudido.
Dizia ele que depois disso se sentiu mais confortável em ser aplaudido, pois sabia que estavam saudando Jesus, e ele era apenas o jumentinho que o conduzia aquele ambiente.
Contou também que quando da visita ao Recife, do Papa João Paulo II, na sua pregação na Ilha de Joana Bezerra
Quando ele, Dom Helder, foi cumprimentar o sumo pontífice, na condição de Arcebispo e anfitrião da autoridade maior da Igreja católica, deu-se conta que não usava a mitra, o grande chapéu litúrgico usado pelo Papa e, pelos Bispos. Ele era a único bispo que não estava com o chapéu obrigatório para a solenidade entre todos do norte e nordeste que comparecia a cerimonia. Sabia que na diocese havia uma mitra, mas como nunca usava não se lembrou de portá-la na ocasião.
Debaixo da mirtra o bispo deveria ter um solidel, o pequeno chapéu que os judeus também usam. Sem a mirtra, nem mesmo o solidel, Dom Helder disse que se aproximou do Papa, como um subordinado que cometia um grave constrangimento.
O Papa João Paulo II compreendendo o que se passava e tirou o solidel, papal para abraçar Dom Helder de igual para igual.
E respeitando e solidarizando-se com a humildade do cearense, disse improvisando naquele português, com forte sotaque polonês:
“- Dom Helder, irmão dos pobres, Dom Helder, meu irmão."
A cena foi vista em todo o mundo. (foto)
Certa vez, quando celebrava uma missa em favor das vítimas que morrera numa enchente em Recife, na Igreja do Colégio Salesiano, repleta de parentes dos mortos, entre eles familiares de quatro bombeiros que na tentativa de resgatar pessoas, também haviam falecido, Dom Helder sempre tão sereno, perdeu um pouco a sua calma habitual. Já tive a oportunidade de contar isso aqui no Blog.
Falava-se que as cheias aconteciam periodicamente, causando vítimas e perdas de bens, pois as autoridades não faziam obras de engenharia que seriam capazes de conter as inundações do rio Capibaribe. Por sinal depois de feita a barragem de Tapacurá, nunca mais o Recife, sofreu uma cheia.
No meio da celebração, chegou a Igreja o governador do Estado, Moura Cavalcanti, que era um homem doce e afável na intimidade, mais tinha um ar autoritário e prepotente, para quem não o conhecia na intimidade.
Vaidoso o governador, andava pelo Trânsito do Recife, sempre escoltado por barulhentas motos com batedores, de sirenes ligadas, coisa que algum integrante da segurança dissera ser necessário.
A chegada do Governador não poderia ter sido mais estapafúrdia e barulhenta, com os batedores manobrando sirenes ligadas, na praça da Igreja, e a chegada do Governador ao templo, procurando se acomodar, com a comitiva, numa igreja superlotada.
Dom Helder impávido não se alterou. Mas na hora da homilia, da pregação durante a missa, começou falando dos mortos e da humildade de Jesus, e acabou comentando num rasgo de voz, que apesar de “não ter batedores”, o filho de Deus ainda era lembrado dois mil anos depois de sua passagem pela terra.
Depois da missa o governador procurou o bispo e pediu desculpas pelo inconveniente da sua chegada e Dom Helder deve também ter se desculpado.
Contei certa vez essa história na frente do atual e eterno Presidente do PMDB em Pernambuco, Dorany Sampaio, (foto) um dos amigos mais próximos de Dom Helder, embora não muito chegado à missa. Fui surpreendido por um aguerrido defensor, de Dom Helder, que não permitia ver maculada a sua memória de homem elegante e comedido.
Saiu ele também, da sua condição de homem afável e contido, e sem meias palavras me chamou de “mentiroso”, diante de várias pessoas, contornando apenas, com a observação amortecedora, que aquela era uma das ocasiões, em que as pessoas para não perder a piada, não se incomodavam de perder o amigo.
De dedo em riste frisou: ”Dom Helder seria incapaz de uma deselegância dessa.”
Nem me defendi. Por respeito à figura irretocável do político pernambucano e até por Dom Helder, que não gostaria de ver, dois dos seus admiradores se desentendendo por causa dele.
O ataque foi tão forte, que desacreditei de mim mesmo. Afinal na condição de romancista amador, sou capaz de fantasiar a realidade, e guardá-la com se verdade fosse.
O desembargador Benildes Ribeiro, (foto) amigo do governador Moura Cavalcanti e admirador de Dom Helder, assistiu a vexatória cena, que por sinal aconteceu em Fortaleza.
No avião o desembargador rememorou o episódio e contou que fora amigo de juventude do governador, e que fora Moura quem lhe promoverá de Juiz para Desembargador e que assistira o episódio de Dom Helder, alegando que Jesus não tinha batedores.
Diante do meu ar perplexo, porque ele não sairá em minha defesa. Ele pediu desculpa dizendo que não tivera coragem de enfrentar a ira fraterna de Dorany e que ficará admirado com a minha tranqüilidade em respeitar, o ilustre pernambucano, a ponto de não dizer nenhuma palavra na minha própria defesa.
De repente, porém, para minha surpresa, disse-me, voltando atrás, que Dorany estava certo e que minha história era uma versão grosseira do que acontecera. Dom Helder disserá aquilo com tal elegância, que poucos perceberam, e nem chegou a causar constrangimento. Que ao contar os fatos, minha versão apresenta o bispo num gesto grosseiro.
Depois com um sorriso maroto, disse: "- ... da próxima vez que encontrar “Dora”, que era a forma que ele usava para chamar o também amigo Dorany Sampaio, "pergunte a ele por que depois daquele dia, Moura nunca mais usou mais batedores."
Nunca perguntei.
Fala-se muito que Dom Helder enfrentou a ditadura, mas antes do movimento militar de 1964 ele já era famoso. Sua nomeação como arcebispo de Olinda e Recife foi festejado pelos recifenses e olindenses.
Foi tratado como pop-star quando chegou para tomar posse. Sua fama já o procedia, disseram que os católicos cariocas não gostaram dele ser afastado do Rio, onde já era aclamado como defensor dos pobres e mobilizador de movimentos de caridade, como a Feira da Providência, que até hoje, recolhe fundos para instituições de caridade na diocese do Rio.
O Colégio Salesiano do Recife suspendeu as aulas, logo depois do recreio, pois o novo bispo vinha falar com os alunos. Ninguém fora informado que ele vinha naquele dia. Os padres guardaram segredo, para evitar que os familiares dos alunos também quisessem participar da reunião, pois o Bispo dissera que queria falar e ouvir os jovens alunos.
(O ainda "jovem" Dom Helder, visitando uma comundade carente, na foto)
Ficamos no auditório esperando, até que padre Arnóbio, o padre conselheiro do colégio, anunciou a chegada do Bispo. Aplaudimos de pé e entusiasticamente, aquela anti-celebridade, que parecia constrangido com a comoção enquanto caminhava para a mesa de reunião.
Em poucas palavras o padre diretor deu-lhe boas vindas, e disse que um aluno, ia falar em nome do colégio. Nós ficamos “despeitados”, pois os padres escolheram o mesmo sujeito descendente de italiano, que falava sempre nas ocasiões como essas, imaginei-me falado para o bispo, mas não tinha o prestígio do grande orador, ítalo brasileiro, um sujeito brilhante, cujo nome não consigo me lembrar, deve ser por inveja neurótica.
Fez-se um grande silêncio. O colega orador começou dizendo que há pouco ganhara um concurso de oratória falando dos bandeirantes, que aumentaram as fronteiras do Brasil, num misto de ambição e heroísmo, que como não tinham mapas, nem sabiam com era o interior do nosso país, empunhavam uma bandeira e para onde o vento soprasse, seguiam adiante como se a bandeira fosse o guia da expedição.
“- Meu pai me disse, falou o orador, quando soube que o senhor vinha ser Bispo do Recife, que o senhor Dom Helder, é como a bandeira que os bandeirantes utilizavam para descobrir novos caminhos...
E não mais falou. O pai dele havia falecido há pouco tempo, era um católico fervoroso e benfeitor das obras de caridade dos salesianos, a gente maldosamente dizia que o prestígio dele era derivado dessas ajudas econômicas do seu pai.
O grande orador estava ali emudecido, ante o auditório, todos os padre do colégio e da face solidária de Dom Helder Câmara.
Cada segundo era um tempo enorme. Ninguém sabia como se ia sair daquele impasse. Lentamente o grande orador, foi caindo de joelhos, os papéis que trazia consigo voaram da tribuna, e ele chorou alto e comovido, urrando pranteado, fazendo o colégio todo com ele chorar.
Rápido e inesperado o pequeno bispo acercou-se do jovem e ajoelhou-se ao seu lado, o rapaz fez um gesto como se lhe pedisse a benção enquanto lhe beijava a mão e era correspondido pelo bispo. De joelho os dois ficaram algum tempo abraçados.
Ainda de joelhos, com o gesto de erguer os braços que lhe era característico, Dom Helder Câmara com sua voz inspiradora, começou a rezar o "Pai Nosso", no que foi seguido automática e emocionadamente por todos, que como que ensaiados ajoelharam-se em profunda oração.
Ao fim batemos palmas para o Padre Nosso, para o nosso orador, mas principalmente para Dom Helder Câmara.
Recomposta a solenidade, foi dada a palavra de novo a Dom Helder. Ele abriu um largo sorriso e falou mais ou menos o seguinte:
“ – Deus está sempre me ensinando: no caminho para cá, vim formulando idéias de como poderia passar uma mensagem para vocês jovens alunos de Dom Bosco, certamente estava me sentindo mais sábio e importante que vocês. Talvez arrogante. O importante Bispo de Olinda e Recife.”
Pausava como se lhe faltasse à palavra:
“- Chego aqui e sou surpreendido com o mais belo discurso que ouviu em toda a minha vida. Não só pelo sentimento do orador, mas pela emoção solidária de todos os presentes, como se todos estivessem fazendo em uníssono uma saudação reveladora para esse humilde servo de Deus.”
Juntou as mãos em oração e concluiu:
“- Vim disposto a ensinar e aprendi. Agradeço a Deus, por ter feito vocês instrumentos de sua sabedoria e a vocês por ter me feito aluno e ensinado a emoção verdadeira vinda de tão jovens corações...”
Foto: acervo do Governador Nilo Coelho
Rainha Elisabeth II, na Bahia, (foto maior), alguém do cerimonial encarregado de abrigá-la com um guarda sol depois de ter estado em Recife, (foto menor) onde aparece ao lado do Governador Nilo Coelho
Depois disso só avistei Dom Helder outra vez, quando a Rainha Elizabeth e o Príncipe Philip estiveram no Recife,1º de novembro de 1968, uma grande multidão se instalou diante do Palácio dos Campos das Princesas, para ver a Rainha. Havia muita preocupação com a segurança e a Monarca para frustração do povaréu, saiu apressadamente do carro e adentrou o Palácio, sem nem olhar para trás.
Na esperança que ela aparecesse na sacada, o povo ficou esperando no jardim externo, quando a figura de Dom Helder apressada apareceu caminhando a pé pela praça em direção ao Palácio, atrasado, mais cumpridor de suas obrigações, de maior autoridade eclesiástica da cidade, que tinha obrigações protocolares de comparecer a eventos como aquele.
O povo aplaudiu o Bispo com gosto. Gritaram o seu nome, e ele na mesma postura encabulada e constrangida de sempre, acenava tímido para também não ser pedante, com o passo cada vez mais apressado para sair do local da homenagem espontânea do seu rebanho. No outro dia, o Diário da Noite dizia em manchete: “Dom Helder foi mais aplaudido que a Rainha da Inglaterra.”
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Veja também a outra face de Dom Helder, enfrentando as forças armadas, lendo o magnifico artigo de Ricardo Noblat, publicado ontem, no seu Blog no dia certo que se comemora o aniversário do Bispo
Postados por Toinho de Passira