7 de dez. de 2010

OPINIÃO - O riso dos traficantes - Lya Luft

OPINIÃO
“Cantamos vitória cedo, houve até quem quisesse declarar esse dia o dia da refundação do Rio de Janeiro. Calma! A trabalheira que há pela frente é quase uma Guerra do Afeganistão”.

Foto: Getty Images

A vida no Complexo do Alemão, voltando ao normal?

Lya Luft
Fonte: Revista VEJA - 06/12/2010

Comenta-se à boca pequena que alguma caneta poderosíssima no exterior estava por deletar o Brasil como acolhedor da Olimpíada e da Copa, devido à violência e consequente insegurança; de repente, uniram-se todas as forças militares, as estratégias, os armamentos e veículos de guerra, e ocuparam-se territórios que havia décadas pertenciam aos criminosos.

Não quero ser maledicente, mas a ideia não me parece insensata demais. Seja como for, é de se orgulhar ter homens e mulheres brigando assim por nós.

Acompanhei até emocionada o inicio da invasão de dois morros do Rio, sua ocupação por soldados e policiais. Constatei menos comovida a fuga dos criminosos por canos de esgoto e galerias pluviais, alguns poucos capturados, a maioria certamente espalhando-se por favelas próximas ou distantes, preparando seu contragolpe ou continuando seus fazeres mortais que nós estimulamos, alimentamos, a cada baforada de maconha, cheirada de pó ou injeção de outro veneno na veia.

Embora me alegre muito com quase zero de monos, me espante com os poucos presos para tão grande aparam (parece que os chefões escaparam com calma porque a invasão foi anunciada durante quase 24 horas ames de ocorrer), alguma coisa me deixa desconfortável, mas pode ser inexperiência e tolice minha. Propaganda demais, autoelogios demais, celebração demais quando sabemos que os que fugiram estão instalados em outras favelas, e que enquanto consumirmos drogas eles continuarão donos da festa.

Não tenho cacife para comentar tudo isso, e aqui o faço como observadora comum. Mas cantamos vitória cedo, houve até quem quisesse declarar esse dia o dia da refundação do Rio de Janeiro. Calma! A trabalheira que há pela frente é quase uma Guerra do Afeganistão. Esperemos que nenhum dos nossos soldados seja ferido ou morto. Levaremos anos para que o Rio seja considerado uma cidade limpa. Há muitos morros a ser ocupados, muitos traficantes a ser presos, muita droga a ser encontrada, junto com armamento pesado e o resto.

E o que me preocupa mais é algo que fica abaixo dos morros, e fora das favelas: é a entrada de drogas e armas pelas nossas tão mal vigiadas fronteiras, e são os consumidores. A triste constatação de milhões de usuários que enchem os bolsos dos traficantes e de seus chefes (sempre há um superior qualquer, que lucra muito mais). Nem falo dos doentes, os viciados, os que precisam de tratamento, entendimento e atendimento. Raros se recuperam. Mas vale a pena tentar: uma vida que se salve vale tudo.

Não pretendi ser engraçada nem quis bancar a boazinha quando escrevi e disse, incontáveis vezes, que sempre que um de nós fuma, cheira ou injeta qualquer veneno está fazendo continência a um traficante. Está pagando a bala que, na arma dele ou de um de seus sequazes, vai matar alguém. Quem sabe meu filho, teu filho, nosso filho.

Amigos e leitores meus se horrorizam com esse meu rigor. Lamento, mas continuo acreditando nisso. Se conseguíssemos demo ver do hábito esses usuários não doentes, não viciados, que em lugar de enfrentar as dificuldades da vida se escondem atrás da nuvem de fumaça ou enchem o nariz de poeira mortal, que em lugar de assumir seu lugar no mundo injetam ilusão nas veias, teríamos vencido a maior de todas as batalhas. Ocuparíamos não apenas morros de traficantes, mas vidas humanas, famílias inteiras, atingidas pela fuga em massa de suas pessoas queridas - não pelas galerias de esgoto, mas pelos túneis do esquecimento.

Não sou simpática nesse assumo, eu sei. Mas presto aqui meus respeitos aos que, viciados, conseguem controlar essa doença; e aos que, usuários brincando com as drogas como um colchão amortecedor, caem em si e mudam de placebo. Nossa irresponsabilidade favorece os portadores da desgraça, que, saltitando de morro em morro, podem até temporariamente se esconder, se disfarçar, mas, a cada pedido de mais droga e chegada de mais mercadoria, hão de abrir - quem sabe neste mesmo instante - o seu melhor sorriso.


*Acrescentamos subtítulo, foto e legenda ao texto original

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