11 de dez. de 2010

Raimundo Carrero acredita no veneno milagroso e salvador de sua literatura

DEPOIMENTO
Raimundo Carrero acredita no veneno
milagroso e salvador de sua literatura

Foto: Arquivo

Marcelino Freire
Fontes: Folha de São Paulo, ”thepassiranews”

Segui Carrero até o hotel. Sem que ele soubesse. Na sombra, até a porta. "Ora, deixa que eu me viro, pode ir embora."

Fui, mas dei meia-volta. De longe, o acompanhei. Como quem guarda um pai. Zela por um grande mestre.

Faz uns dois anos. Carrero havia extraído um tumor da garganta. Veio, depois, a Sampa. Com a voz já recuperada. Mas a alma severa. Assustada. Feito um preso, frágil, colocou suas mãos no meu ombro. E fomos, juntos, atravessando a avenida Paulista. Em liberdade. Essa imagem eu não esqueço. Ave! E agradeço aquela primeira batalha, vencida.

Aí veio o infarto, em seguida. Putz-grila! Socorreram, às pressas, seu coração. Bonachão. O meu, em frangalhos. O que está acontecendo? Meu Cristo! Sofri calado. E lembro: do tempo em que nos conhecemos. Ele, de peito inflado. Apaixonado por Graciliano Ramos, Flaubert.

Ensinando-me os ossos do ofício. Os caminhos do ofídio. Nada fácil. Foi um soco, certeiro, a oficina de criação literária que fiz com Carrero, no Recife, em 1988. Um golpe assombroso. Era o primeiro escritor que eu via. Em carne viva. Cangaceiro e sanguinário. O matador de advérbios, o perseguidor de adjetivos. Este homem grande, duro na queda. "Duro", neca. Leve. Sempre bem-humorado. Colecionador de causos. Hilários. Piadista.

Foi ele quem, na Flip, confundiu o escritor americano Paul Auster com um gerente de pousada. Foi quem puxou um papo em francês -sem saber francês- com o escritor Pierre Michon. "O segredo, quando não se sabe uma língua, Marcelino, é falar baixo", revelou-me ele a técnica.

Entre tantas técnicas. E ensinamentos. Como, por exemplo, na manhã em que estive em sua casa para fazer uma visita. Carrero, velho guerreiro, enfrentando mais uma rasteira. Da vida. Recuperando os movimentos da perna. Das mãos. Vencendo um derrame com aquele seu jeito. Palhaço. De pedra que não se consome.

"A doença já me deu um romance", me falou. E os olhos dele faiscavam. "A banda não tocou. O galo não cantou. O mundo não mudou. Eu estava morrendo." Recitou, apaixonado, o trecho do livro e levantou um sorriso. Vencedor. Certo de que a literatura é o melhor remédio. O veneno milagroso. E salvador. De quem serei para sempre -como o mestre me ensinou- seu humilde seguidor.


Marcelino Freire é escritor. É autor, entre outros, de "Contos Negreiros" (editora Record).

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