15 de jan. de 2011

Crônica: SAUDADE - Luis Fernando VERRISSIMO

Crônica
SAUDADE
Luis Fernando VERRISSIMO

A ilha só não é uma ilha deserta de cartum porque em vez de uma palmeira tem várias. Mas no resto é igual. Os náufragos são dois. Dá para ver o tempo que estão na ilha pelo comprimento das suas barbas, e as barbas batem no joelho. Estão falando sobre mulher.

- Tem um ponto, acho que é aqui no pescoço - faz tanto tempo - em que todas cheiram igual.
- Bobagem. Cada uma tem um cheiro diferente.
- Não, não. Tenho certeza quase absoluta. É aqui, nesta dobra. Um cheiro, assim, doce. Todas.
- E você cheirou todas?
- Todas as que eu conheci tinham o mesmo cheiro aqui. Eu enchia as narinas, meu Deus. Eu ...
- Não vá começar a chorar outra vez. Você prometeu.

- Sabe o que é que eu me lembro? O antebraço.
- Onde é que ficava isso?
- Aqui em cima. O antebraço é a coxa do braço. O braço era embaixo.
- Não é o contrário?
- Não importa o nome. Aquela parte carnuda, em cima.
- Já localizei. O que que tem?
- É a parte da mulher que envelhece mais devagar.
- Você está delirando.
- É fato. Quando a mulher é nova, a carne ali é rija. Depois de uma certa idade ela perde a rigidez, mas não fica flácida logo. Fica, assim, cheia. Roliça.
- História.
- Até nas magras, aquela parte é carnuda. Nunca conheci uma magra que não tivesse, pelos menos ali, um montinho remissor. Alguma coisa onde se meter os dentes.

- Lembra as magras de peito grande?
- Lá vem você com peito.
- Sempre fui um homem de peitos.
- Está bem, está bem. Mas não generaliza. Pense naquela curva aqui, saindo da axila e inchando suavemente, suavemente ... Dizem que não existem dois seios iguais no mundo.
- Como que não? Pelos menos dois tem que haver.
- Não há! Não é fantástico? O esquerdo é diferente do direito.
- Vem com essa. Só porque cada um olha para um lado.
- Não. São diferentes. Têm personalidades diferentes, tudo.
- E eu tenho que agüentar ...

- Lembra nuca?
- Nuca ...
- Quando elas puxavam o cabelo para cima, sempre sobravam uns fios na nuca.
- Puxa. Eu tinha me esquecido da nuca.
- É onde a mulher tem o cabelo mais fino.
- Não vem com teoria.

- A curva do ombro. As costas quentes. Aquele ponto onde ainda não é a nádega mas já há uma elevação, um prenúncio ...
- A junção da nádega com a parte de trás da coxa ...
- Ah, aquela prega.
- Não tinha prega nenhuma.
- Comoque não? Uma espécie de subnádega. Cansei de ver.
- Nas suas, talvez. Que eu me lembre, terminava a nádega e começava a coxa, direto.
- Por amor de Deus. E aqueles riscos que elas tinham embaixo da nádega, o que eram? Bigodes?
- Nunca vi risco nenhum.
- Porque você não prestou atenção. Só via peito.
- Está bem. Concedo a prega.

- Agora, formidável era como a frente das coxas se projetava, lembra?
- Mmmm.
- A curva das coxas se salientava. Era uma curva longa, do quadril até o joelho. Um leve arco protuberante.
- Dos joelhos, sempre preferi a parte de trás.
- Os vãos. Exato.
- Nas coxas, às vezes, você não via, mas olhando de perto notava uma leve penugem.
- Tão leve que passando a mão não se sentia.
- Muitas raspavam as pernas.
- Às vezes ficavam cortes. Pequenos cortes.
- Isso. Criavam casca.
- Só olhando bem de perto a gente via.
- A pele macia e aquele cortezinho. Pobrezinhas.
- A pele macia ...
- A perna atrás. Do vão dos joelhos até o tornozelo.
- O tornozelo. Enrugadinho, mas lindo.

- O dedinho do pé, sempre meio encurvado para dentro.
- Todo aquele grande trecho do pescoço, da orelha até o ombro.
- Orelha!
- A boca.
- Não fala.
- O lábio inferior um pouquinho maior que o superior.
- Os dentinhos, às vezes saltados. Mmmm.
- A gente encostava a cabeça num seio e ouvia o coração.
- Era morno. Tudo era morno.
- Aquelas duas entrâncias na base das costas.

- O umbigo ...
- Ah ...
- Você prometeu que não ia chorar mais.
- Por que você foi falar no umbigo?


Crônica do livro “Comédia da Vida Privada” – 22ª Edição - Editora L&PM, Porto Alegre 1966

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