Crônica SAUDADE Luis Fernando VERRISSIMO
A ilha só não é uma ilha deserta de cartum porque em vez de uma palmeira tem várias. Mas no resto é igual. Os náufragos são dois. Dá para ver o tempo que estão na ilha pelo comprimento das suas barbas, e as barbas batem no joelho. Estão falando sobre mulher.
- Tem um ponto, acho que é aqui no pescoço - faz tanto tempo - em que todas cheiram igual. - Bobagem. Cada uma tem um cheiro diferente. - Não, não. Tenho certeza quase absoluta. É aqui, nesta dobra. Um cheiro, assim, doce. Todas. - E você cheirou todas? - Todas as que eu conheci tinham o mesmo cheiro aqui. Eu enchia as narinas, meu Deus. Eu ... - Não vá começar a chorar outra vez. Você prometeu.
- Sabe o que é que eu me lembro? O antebraço. - Onde é que ficava isso? - Aqui em cima. O antebraço é a coxa do braço. O braço era embaixo. - Não é o contrário? - Não importa o nome. Aquela parte carnuda, em cima. - Já localizei. O que que tem? - É a parte da mulher que envelhece mais devagar. - Você está delirando. - É fato. Quando a mulher é nova, a carne ali é rija. Depois de uma certa idade ela perde a rigidez, mas não fica flácida logo. Fica, assim, cheia. Roliça. - História. - Até nas magras, aquela parte é carnuda. Nunca conheci uma magra que não tivesse, pelos menos ali, um montinho remissor. Alguma coisa onde se meter os dentes.
- Lembra as magras de peito grande? - Lá vem você com peito. - Sempre fui um homem de peitos. - Está bem, está bem. Mas não generaliza. Pense naquela curva aqui, saindo da axila e inchando suavemente, suavemente ... Dizem que não existem dois seios iguais no mundo. - Como que não? Pelos menos dois tem que haver. - Não há! Não é fantástico? O esquerdo é diferente do direito. - Vem com essa. Só porque cada um olha para um lado. - Não. São diferentes. Têm personalidades diferentes, tudo. - E eu tenho que agüentar ...
- Lembra nuca? - Nuca ... - Quando elas puxavam o cabelo para cima, sempre sobravam uns fios na nuca. - Puxa. Eu tinha me esquecido da nuca. - É onde a mulher tem o cabelo mais fino. - Não vem com teoria.
- A curva do ombro. As costas quentes. Aquele ponto onde ainda não é a nádega mas já há uma elevação, um prenúncio ... - A junção da nádega com a parte de trás da coxa ... - Ah, aquela prega. - Não tinha prega nenhuma. - Comoque não? Uma espécie de subnádega. Cansei de ver. - Nas suas, talvez. Que eu me lembre, terminava a nádega e começava a coxa, direto. - Por amor de Deus. E aqueles riscos que elas tinham embaixo da nádega, o que eram? Bigodes? - Nunca vi risco nenhum. - Porque você não prestou atenção. Só via peito. - Está bem. Concedo a prega.
- Agora, formidável era como a frente das coxas se projetava, lembra? - Mmmm. - A curva das coxas se salientava. Era uma curva longa, do quadril até o joelho. Um leve arco protuberante. - Dos joelhos, sempre preferi a parte de trás. - Os vãos. Exato. - Nas coxas, às vezes, você não via, mas olhando de perto notava uma leve penugem. - Tão leve que passando a mão não se sentia. - Muitas raspavam as pernas. - Às vezes ficavam cortes. Pequenos cortes. - Isso. Criavam casca. - Só olhando bem de perto a gente via. - A pele macia e aquele cortezinho. Pobrezinhas. - A pele macia ... - A perna atrás. Do vão dos joelhos até o tornozelo. - O tornozelo. Enrugadinho, mas lindo.
- O dedinho do pé, sempre meio encurvado para dentro. - Todo aquele grande trecho do pescoço, da orelha até o ombro. - Orelha! - A boca. - Não fala. - O lábio inferior um pouquinho maior que o superior. - Os dentinhos, às vezes saltados. Mmmm. - A gente encostava a cabeça num seio e ouvia o coração. - Era morno. Tudo era morno. - Aquelas duas entrâncias na base das costas.
- O umbigo ... - Ah ... - Você prometeu que não ia chorar mais. - Por que você foi falar no umbigo?
Crônica do livro “Comédia da Vida Privada” – 22ª Edição - Editora L&PM, Porto Alegre 1966 |
Nenhum comentário:
Postar um comentário