A experiência que a pediatra e sanitarista havia acumulado na assistência à população carente do Paraná valeu muito nessa empreitada. A Dra. Zilda achou que poderia construir seu projeto em cima das cinco ações básicas de saúde que, ela sabia, eram responsáveis pela redução da mortalidade infantil.
Essas cinco ações são a saúde da gestante, o aleitamento materno, a vacinação, o soro caseiro e o controle do peso. Bem de acordo com o que queria o Unicef, pois James Grant estava entusiasmado com a eficácia do soro caseiro - duas medidas de açúcar e uma de sal, misturadas num copo d'água - que estava salvando milhares de crianças desnutridas em Bangladesh, um dos países mais pobres do mundo. O segredo de tudo seria a solidariedade, o trabalho comunitário, envolvendo povo, governo e igrejas num esforço comum.
Escolheu-se então o município de Florestópolis - 14.700 habitantes, 73% deles trabalhadores bóias-frias - para a implantação do projeto. Situado a 80 quilômetros de Londrina, arquidiocese de d. Geraldo Agnelo, que poderia acompanhar tudo de perto, era o campo ideal.
Foi uma escolha acertada, pois em pouco tempo a mortalidade infantil de Florestópolis, que era de 127 por mil, baixou para 28 por mil. O diretor do Unicef em Brasília, o indiano Jabole Mathai, ficou impressionado com o resultado. Mandou um observador, o médico peruano Heron Lechtig, checar como havia acontecido o milagre e prometeu recursos para levar a obra adiante. A ajuda vinha na hora certa, pois se lutava com muita dificuldade, a Dra. Zilda viajando de ônibus ou pegando carona, entre Curitiba e o interior, para montar o projeto.
Foto: Arquivo Pessoal
Quando a Dra. Zilda estava discutindo o projeto com d. Geraldo em Londrina, ainda sem saber como mobilizar o povo de Florestópolis. Ficou encantada com a ideia e saiu com o compromisso de convidar umas 20 pessoas, os futuros líderes, para uma reunião marcada para uma tarde de sábado. d. Geraldo celebraria uma missa na Matriz de São João Batista, a Dra. Zilda explicaria o que se pretendia fazer.
A igreja lotou. Quando a médica perguntou quem queria que o projeto fosse para frente, todo mundo levantou o braço. Decidiu-se então dividir o município em comunidades por quarteirão e ver quem poderia visitar as famílias, casa por casa, para o planejamento inicial. A ideia era descobrir onde havia gestantes e crianças de até seis anos, anotar o endereço e escolher os voluntários que pudessem começar o trabalho.
Eunice Vicente Cardoso, que participou da primeira reunião com a Dra. Zilda, disse que a cidade parou uma semana para o treinamento dos líderes.
Quando a Dra. Zilda voltou a Florestópolis, um mês após o lançamento do projeto, os líderes já eram 76, quase todos funcionários públicos, principalmente professoras. "Era muita gente, mas não dispensei ninguém, para não desanimar", disse a fundadora da Pastoral da Criança, que então dividiu os voluntários em cinco grupos, cada um encarregado de uma ação básica.
Vinte anos depois, Florestópolis - 12.398 habitantes, pelo último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - melhorou bastante, embora continue enfrentando problemas sociais, incluindo invasões de terras e um assentamento. "Os bóias-frias sofrem mais no período da entressafra", diz o padre Renato Colbert Bertin, há poucos meses na cidade.
A Congregação das Irmãs Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus, à qual Irmã Nelcy pertence, dirige atualmente o colégio onde Irmã Eugênia Piettá, das Servas da Caridade, fez as primeiras reuniões da pastoral.
As coisas iam caminhando bem no segundo semestre de 1983, quando a Igreja decidiu transformar em Pastoral da Criança o projeto de redução da mortalidade infantil. O exemplo de Florestópolis suscitou iniciativas semelhantes em São Paulo - onde o então bispo auxiliar Dom Luciano Mendes de Almeida repetiu a experiência na região episcopal do bairro de Belém - e, logo em seguida, no Rio Grande do Sul.
A nomeação de d. Geraldo Majella Agnelo para a Comissão Episcopal de Pastoral (CEP) facilitou o processo, pois ele viajava com frequência a Brasília, onde tinha contato não só com outros bispos da CNBB mas também com a direção do Unicef. Foi do arcebispo de Londrina a ideia de chamar de pastoral o projeto iniciado pela Dra. Zilda.
Foto: Antonio Marques/AE
Com crianças indigenas
A CNBB acompanha todos os passos da Pastoral da Criança, um dos 11 organismos de seu organograma. O responsável por ela é Dom Aloysio José Leal Penna, arcebispo de Botucatu (SP), que preside no Conselho Episcopal de Pastoral a comissão encarregada também da família e da educação.
Se a Pastoral da Criança presta contas aos tribunais do dinheiro recebido do governo, submete também à Igreja a estratégia e os resultados de seu trabalho. A Dra. Zilda Arns nunca faltou a uma assembleia geral dos bispos em Itaici, no município paulista de Indaiatuba, para apresentar no plenário um relatório de suas atividades.
Presente em todos os Estados brasileiros, seus 203 mil voluntários atuam principalmente nas periferias das cidades e nos bolsões de pobreza da zona rural. Em sua área de atuação, a taxa de mortalidade infantil é 60% menor do que a da média nacional. A pastoral trabalha em todas as dioceses e em 61% de suas paróquias. Embora seja um organismo da Igreja Católica, ela age como movimento ecumênico, sem discriminação, aberto a pessoas de outras religiões. Na Amazônia, uma coordenadora é evangélica da Assembleia de Deus.
O Ministério da Saúde é responsável por 80% dos recursos - cerca de R$ 20 milhões. Os outros 20% vêm do Unicef, das dioceses e de convênios menores. Nesses 20 anos, não houve dificuldade com o governo, com nenhuma administração. A Dra. Zilda, que nesse tempo teve de se entender com uns 15 ministros da Saúde.
Foto: Arquivo Pessoal
Com crianças no Timor
Depois de se espalhar pelo Brasil, a Pastoral da Criança atravessou fronteiras para chegar a outros países da América Latina, África e Ásia. "Em Angola, comecei em 1994 um treinamento com 17 mulheres e hoje, menos de dez anos depois, há 2.500 angolanas capacitadas, trabalhando num programa igual ao nosso e atendendo a pelo menos dez mil crianças".
Argentina, Bolívia, Colômbia, Chile, Equador, México, Paraguai e Venezuela na América Latina; Guiné-Bissau e Moçambique na África; e Timor Leste e Filipinas na Ásia copiaram a receita com sucesso, sempre em benefício das populações mais pobres. O México levou a pastoral a comunidades indígenas - o que ocorre igualmente no Brasil. "Recebi também uma visita de ciganos, que são nômades, interessados em treinar líderes para cuidar das crianças", revela a Dra. Zilda.
A maioria dos 203 mil voluntários da Pastoral da Criança vem da própria comunidade. É gente que mora em favelas e palafitas, nos grandes bolsões de pobreza, onde a desnutrição ameaça e as doenças matam mais. Esses voluntários recebem a orientação de sete mil equipes de coordenação - profissionais, aposentadas e pessoas idosas, mas também jovens, todos muito animados e atuantes.
Sentem orgulho de vestir a camiseta da Pastoral, com a inscrição "para que todas as crianças tenham vida", o lema criado em 1983 por d. Geraldo Majella Agnelo - inspiração do Evangelho - quando o incipiente projeto de redução da mortalidade infantil começava a engatinhar no norte do Paraná. Todo mundo uniformizado, as reuniões para o Dia do Peso são uma festa. Quem vai uma vez não quer mais faltar.
A jovem Zilda defendendo as crianças nos fóruns mundiais
A Pastoral da Criança tem uma estrutura simples. Em sua sede, em Curitiba, trabalham 40 funcionários contratados. Dali, num belo casarão recebido em comodato do governo estadual - antes, era um orfanato de meninas - eles controlam o movimento, sempre em contato com os coordenadores em todo o País. O material de apoio sai das salas da Rua Jacarezinho, n.º 1691, bairro das Mercês, onde funciona a Coordenação Nacional.
Quase nenhuma burocracia. "Quando vêm os auditores e fiscais do Tribunal de Contas da União, espalhamos os documentos em cima de uma mesa grande para eles examinarem. Fazemos isso quase todos os meses e, graças a Deus, nunca tivemos problemas", disse Dra. Zilda. A inspeção era feita antes em Brasília, mas o trabalho foi descentralizado. Uma economista, um contador e dois estagiários cuidam dos convênios.
Técnicos, contratados pela média do mercado, preparam o material educativo, treinam os multiplicadores e acompanham as ações. Digitadores processam nos computadores as fichas manuscritas que chegam de todos os cantos do Brasil. Além do controle das cinco ações básicas, segredo da eficácia do programa, a Pastoral da Criança promove cursos de alfabetização de adultos, círculos bíblicos, encontros de reflexão, oficinas de avaliação, tudo na linha de evangelização da Igreja.
O Jornal Pastoral da Criança, com uma tiragem mensal de 250 mil exemplares e também disponível na Internet (www.pastoraldacrianca.org.br) registra o que o programa está fazendo, transmite as orientações da Coordenação Nacional e publica pequenas reportagens enviadas pelas comunidades sobre suas conquistas e suas dificuldades. Nem sempre há espaço para publicar tudo, mas nada fica sem resposta. Além de assinar uma coluna no jornal - Conversando com Você - a Dra. Zilda enviava cartas pessoais para animar as equipes.
A Coordenação Nacional produz também o programa semanal de rádio Viva a Vida, de 15 minutos, que é transmitido por 1.700 emissoras. Distribuído em fita cassete, ele é gravado em dois estúdios, para atender às diferenças regionais de linguagem - um em Curitiba, para as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, e outro em Teresina, para o Norte e Nordeste. Fala de temas como saúde, instrução, direitos e organização comunitária.
Antes de se mudar para a sede atual, a Pastoral da Criança funcionava na casa de Dra. Zilda, que tinha ali também seu consultório particular de pediatria. Meio apertado, mas deu para conciliar enquanto os colaboradores não eram tantos e não havia tanto material como hoje. Como a médica trabalhava também no serviço público, as coisas foram ficando cada dia mais complicadas, pois não havia tempo nem espaço para tudo.
"Meu consultório era quase uma extensão do posto de saúde, pois as pessoas batiam à minha porta a qualquer hora, às vezes até de madrugada", recorda a Dra. Zilda. Os pobres, principalmente os pobres, recorriam sempre a ela - o que significava 18 consultas de graça em cada 20.
Nelson Arns Neumann, que também é médico pediatra e assumiu a função de coordenador nacional adjunto, substitui a mãe durante as suas constantes viagens. Mergulhou de cabeça no programa, cujas atividades vem acompanhando desde a fundação - ele e os outros irmãos. Sempre seguiram tudo de perto, apoiando e dando palpites - o voluntariado em família.
Eram adolescentes e crianças, em 1983, quando a Dra. Zilda recebeu o telefonema de d. Paulo, o tio cardeal. Agora, Rubens é veterinário, Heloísa é psicóloga e Rogério é administrador de empresas. Sílvia, que também era administradora de empresas, morreu e deixou um filho, de três anos, que foi morar com a avó.
A família tem uma chácara, a 20 minutos do centro de Curitiba, que mãe e filhos compartilhavam, cada um em sua casa, como faziam os Arns em Forquilhinha, na colônia de imigrantes alemães de Santa Catarina, onde Zilda e seus 12 irmãos nasceram. D. Paulo, que costumava passar ali pelo menos uma semana de suas férias anuais, telefonava com frequência para matar a saudade dos parentes.
O cardeal pede também notícias da Pastoral da Criança. Sempre que pode, a Dra. Zilda o visitava em São Paulo, para trocar ideias e pedir conselhos.
Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo e irmão de Zilda Arns: "Acabo de ouvir emocionado a notícia de que minha caríssima irmã Zilda Arns Neumann sofreu com o bom povo do Haiti o efeito trágico do terremoto. Que nosso Deus, em sua misericórdia, acolha no céu aqueles que na terra lutaram pelas crianças e os desamparados. Não é hora de perder a esperança. Zilda está no coração de Deus"
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